Anna chega de trem para se encontrar com o irmão, Oblónski, na adaptação de Joe Wright de 2012 para Anna Karenina.
Dando prosseguimento à série Meus amigos de papel, em que falei sobre meus personagens de romance favoritos, como o narrador proustiano, Conselheiro Aires, de Machado de Assis e Elizabeth Bennet, de Jane Austen, vou falar sobre Anna Karenina, de Tolstói (ou Anna Kariênina, dependendo da tradução). Já havia falado sobre esse romance em uma outra série que escrevi, chamada Entre quatro paredes, o oponente como marido. Mas nesse post, claro, focalizei no detestável Karenin, o marido de Anna, que se opõe a ela assim como um obstáculo a um cavalo de corrida, um burocrata à felicidade, um trem a um frágil corpo humano. Portanto, estava devendo um post à adorável Anna.
Keira Knightley e Aaron Taylor-Johnson como Anna e Vrónski, na versão de Joe Wright para o clássico de Tolstói. Apesar de eu não gostar da moça como atriz, devo admitir, como um crítico americano fez, que ninguém usa um vestido de gala como ela. Já o rapaz me surpreendeu no papel de Vronsky, apesar da pouca idade (ele tem 22 anos).
Como disse antes e repito agora, a figura de Anna Karenina no romance hipnotiza a todos a sua volta. A moça tinha uma vivacidade de espírito evidenciada em todo o seu corpo e se há uma característica forte da presença desse vigor pode-se resumir na descrição dos olhos. No momento em que ela cruza o caminho de Vrónski na saída do trem logo no início do romance e lhe lança um desses olhares cúmplices, ali mesmo ele já está perdido. Porque basicamente o que o liga à Anna é um gigantesco e incontrolável desejo de viver (ainda que o fim desse relacionamento tenha sido funesto). Aqui, um trecho da cena desse primeiro encontro:
"Nesse breve olhar, Vrónski teve tempo de perceber uma vivacidade contida, que ardia em seu rosto e esvoaçava entre os olhos brilhantes e o sorriso quase imperceptível, que arqueava os lábios rosados. Parecia que o excesso de alguma coisa inundava o seu ser e, a despeito da vontade dela, se expressava, ora no brilho do olhar, ora no sorriso. Intencionalmente, a mulher apagou a luz dos olhos, mas essa mesma luz cintilou, à sua revelia, no sorriso quase imperceptível". (Liev Tolstói, trad. Rubens Figueiredo, p.73)
Além da belíssima metáfora "intencionalmente, ela apagou a luz dos olhos" (afinal todos sabemos o fim de Anna Karenina, certo? ), há o que restou da sua presença, uma luz que cintila à sua revelia. E, por assim dizer, continua a cintilar por todos esses anos a cada vez que lemos o romance.
Wright optou por encenar o romance em um teatro, o que, por um lado fez Tolstói rolar na tumba (ele detestava o teatro), por outro, resultou em algo criativo, embora o recurso nos impeça o tempo inteiro de aderir inteiramente ao sofrimento dos personagens, pois há este constante mis en abyme interferindo.
Li recentemente o artigo de Harold Bloom sobre Tolstói no seu livro The Western Canon e algo me surpreendeu. Todos sabemos da predileção de Bloom sobre Sheakespeare e não por acaso todos os artigos dele tendem a ser uma espécie de estudo comparativo entre Sheakespeare e "os outros". Pois bem, ele analisa a verdadeira aversão de Tolstói sobre o autor inglês, dizendo que ele (Tolstói) "atacava Sheakespeare absurdamente", sobre o que Harold Bloom deduz que "sua fúria de Sheakespeare era defensiva, muito embora ele fosse alheio ao fato" (Bloom, p.316). Para depois concluir que a personagem Anna Karenina tinha uma profunda veia de Sheakespeare nela, "pelo o que Tolstói, que a ama, jamais a perdoará". O artigo de Bloom só evidencia o que eu sempre achei sobre este romance e sobre muitos outros que há por aí. Muitas vezes, o personagem foge ao controle do autor e esse foi o caso de Anna Karenina. Ele a criou e ele a temia.
A cena do segundo pedido de casamento de Liévin (alter-ego de Tolstói na história) e Kitty. Ela entende exatament o que ele quer dizer apenas com as iniciais da frase. A cena, transposta do romance, descreve também como Tolstói pediu sua esposa Sofia em casamento. Também como Tolstói, Liévin deu seus diários para a noiva ler antes do casamento, com detalhes da sua vida sexual. O objetivo era o mesmo: fundar o casamento em um relacionamento sem mentiras e omissões. Na foto, Domhnall Gleeson, como Liévin e Alicia Vikander, como Kitty na versão de Wright.
Há ainda uma história que circula nos meios acadêmicos que, em certa ocasião, ao escrever o romance Anna Karenina, Tolstói sai do seu estúdio sacudindo a cabeça e perplexo "com o que Anna tinha feito naquele dia".
Fascinante é o mínimo que se pode concluir dessa personagem, uma feminilidade fértil e complexa, um ser de três dimensões que extrapola o papel, o romance e o seu tempo.
A esposa de Tolstói, Sofia, com sua filha Alexandra. Eles tiveram 13 filhos. Fonte aqui.
O escritor aos 20 anos, em 1848. Ele era filho do conde Nicolai Ilyich Tolstói. Fonte aqui.
Bibliografia:
Anna Kariênina, Liev Tolstói, trad. Rubens Figueiredo, Cosac Naify, 2009.
"Tolstoy and Heroism", Harold Bloom, in The Wester Canon, Riverhead Books, 1995.
"The Theory of the Novel: A Historico-Philosophical Essay on the Forms of Great Epic Literature", Georg Lukács, in The Theory of the Novel, edited by Michael McKeon, John Hopkins U.Press, 2000.