Foto: filme La Belle Personne (A bela Junie, no Brasil), de 2008, de Christophe Honoré, com Louis Garrel e Léa Seydoux. Léa pareceu-me a idéia perfeita da Veronica jovem. Bonita, chique e misteriosa. Fonte Allocine.
"We live in time - it holds us and moulds us". Julian Barnes
"Nós vivemos no tempo - ele nos sustenta e nos molda".
Gosto de ler livros que me façam pensar. Outras pessoas gostam de ler algo para se divertir, ou para se sentir bem ou para esquecer. Nada contra, mas a minha praia é outra. Recentemente, li dois livros de autores bem diferentes que, entretanto, fizeram-me refletir um bocado. Foram Nêmesis, do Philip Roth, e The Sense of an Ending (O sentido de um fim), a ser traduzido pela Rocco em 2012), de Julian Barnes, que ganhou o Man's Booker Prize de 2011.
Julian Barnes, vencedor do Man's Booker Prize de 2011, que dá uma verdadeira AULA MAGNA de literatura com The sense of an ending. Fonte: BBC.
Mas enquanto Roth revela uma humanidade doente, cuja história é tão marcada pela destruição e a degeneração que dela é preciso se fazer uma ANAMNESE, como na medicina o médico faz ao levantar o histórico do paciente, em Barnes o foco é mais individual. Somos o quê e para quê estamos aqui? E se temos milhões de certezas no início, (que ele situa na juventude), elas vão escasseando mais e mais no final. Falando assim, parece um livro deprê. Eu diria que Nêmesis, do Roth, é sim. Mas este não é absolutamente o caso de Julian Barnes. Em Sense of and Ending, ele narra uma história muito bem contada, simples e com uma leveza que coopta completamente o envolvimento do leitor.
Léa Seydoux e Grégoire Leprince-Ringuet, em La belle personne. O Grégoire Leprince-Ringuet é a imagem que eu fiz do Adrian. Jovem e sóbrio. Deve ter parecido uma boa troca para a Veronica mesmo.
A história gira em torno de Tony Webster, um aposentado tranquilo, que vive um cotidiano banal e satisfatório, após uma vida sem grandes contratempos. Uma carreira relativamente bem-sucedida, uma casamento que terminou em divórcio amigável, uma filha criada e bem casada e netos. Até que um dia, ele recebe uma inesperada herança de uma pessoa que ele mal conheceu: a mãe de uma ex-namorada. A herança consiste em uma soma irrisória de dinheiro e um documento: o diário de um brilhante colega seu de colégio que se suicidou ainda na juventude. Ele passa então a tentar recuperar esse diário com a tal ex-namorada - que se nega veementemente a cedê-lo - e a reviver todos os acontecimentos do passado tais como eles surgem na memória.
Nessa verdadeira "busca do tempo perdido", Tony vai reconstituindo a sua própria vida e as decisões que tomou em contraponto ao seu brilhante amigo, que tinha o poder de seduzir a todos à sua volta, inclusive a namorada de Tony. Por exemplo, ele revê seu casamento com Margareth, hoje sua amiga e ex-esposa, uma pessoa totalmente diferente da ex-namorada de colégio, Veronica. Enquanto Veronica é misteriosa, estranha, surpreendente, Margareth é o oposto: a mulher prática, objetiva e direta. Sem mistérios, sem sombras de dúvida. É com ela que ele decide se casar: a mulher ideal. O sessentão Tony reflete sobre essa escolha:
"We thought we were being mature when we were only being safe. We imagined we were being responsible but were only being cowardly. What we called realism turned out to be a way of avoinding things rather than facing them."
"Nós pensávamos que estávamos agindo de modo maduro, quando estávamos apenas sendo prudentes. Nós nos imaginávamos responsáveis, mas éramos apenas covardes. O que chamamos realismo veio a ser apenas uma maneira de evitar as coisas no lugar de enfrentá-las".
Em um trecho do diário de Adrian, o amigo de Tony que era genial em Matemática como em muitas outras matérias, ele fala sobre a acumulação. Ele diz que quando você aposta no cavalo e ganha, e você aposta de novo e você ganha de novo, você tem um acúmulo de ganhos. Mas, e quando você perde? E na vida? "You bet on a relationship, it fails; you go on to the next relationship, it fails too: and maybe what you lose is not two simple minus sums but the multiple of what you staked. /.../ Life isn't just addition and subtraction. There's also the accumulation, the multiplication of loss, of failure." (p. 113)
"Você aposta em um relacionamento, ele fracassa; você vai para outro relacionamento, ele fracassa também. E talvez o que você perca não seja a simples soma de duas subtrações, mas a multiplicação do que você acumulou. /.../ A vida não é apenas adição e subtração. Há também a acumulação, a multiplicação da perda e do fracasso."
Tentando entender o significado das palavras de Adrian, o sessentão Tony desiste: "mas eu nunca fui bom em Matemática". Atrás de uma história aparentemente simples, Julian Barnes vai gota a gota destilando suas questões - que, aliás, permanecem questões. E a pergunta feita diversas vezes por Veronica a Tony resvala para o leitor: you just don't get it, do you? / você simplesmente não entendeu mesmo, ou entendeu?
A frase se aplica à história de Adrian, Tony e Veronica, mas pode também referir-se a grande parte do que é colocado no romance. Ou seja: sobre certas questões, nós simplesmente não sabemos nada, nem com todo o conhecimento que temos hoje no mundo. O que remete também ao título do romance - qual o sentido de um fim (ou de um começo)? Aliás, a palavra SENSE, em inglês tem outros significados além deste - também pode ser "sentimento", "sensação". Infelizmente, esse duplo sentido perde-se na tradução. Tenho curiosidade como será o título aqui no Brasil. Em Portugal, foi usado "o sentido de um fim" mesmo.
Afinal, é preciso constatar que o personagem central de Sense of an ending, é O TEMPO. Como diz a frase na primeira página do livro, o tempo - e a memória do tempo - que nos envolvem e nos formam e é tudo o que temos.