Foto do ator Tobias Santelmann, que interpretou Torvald Helmer há dois anos na Noruega (porém essa foto é de outra peça). Achei perfeita para ilustrar Torvald, ESPERANDO SENTADO pela volta de Nora, que em pé cansa! Fonte: Aftenposten, Noruega.
Essa é a continuação da série sobre o "Oponente" em literatura, que começou com esta figura em vários romances de Jane Austen e agora, nesta segunda etapa, em vários autores, no que eu estou chamado de "Entre quatro paredes: o oponente como marido". Nesta etapa já foram abordados Charles Bovary, de Madame Bovary, e Bentinho, de Dom Casmurro. Aqui falo da relação entre Torvald e Nora Helmer, o casal da peça Casa de Bonecas, do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, publicada em 1879 e que foi um grande sucesso do autor desde o início, embora sempre cercada de muita polêmica.
"Descanse tranqüila, tenho amplas asas para protegê-la. [...] Ah, como o nosso lar é tranqüilo e encantador; Nora! Aqui você está segura! Eu a guardarei como a uma pomba que foi acolhida depois de ser retirada sã e salva das garras do abutre."
Casa de Bonecas, trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino, editora Veredas, coleção Em Cartaz, 2009, p. 94.
Pessoalmente, acho que uma das características mais interessantes do povo escandinavo é dizer as coisas "na lata", ou seja: dizer em alto e bom som, preto no branco, o que se pensa. Em parte, as falas de Nora Helmer que seduziram o mundo inteiro desde que foi encenada pela primeira vez, a meu ver, devem-se não apenas ao gênio indiscutivelmente descomunal de Henrik Ibsen, mas também podem ser creditadas a essa "cultura da franqueza", digamos assim. Comparando com a discrição bem latina de "não vamos mais falar sobre esse assunto" da (igualmente cativante) personagem Capitu, de Machado de Assis, as falas de Nora ao final da peça para Torvald são de uma atualidade desconcertante. Quantas mulheres hoje não desejariam dizer a um parceiro decepcionante: "você não pensa nem fala como o homem a quem eu possa me unir como companheira"? (mesma edição, p. 101)
E tantas outras falas que, se retiradas do texto da peça A Casa de Bonecas, que foi escrita por Ibsen em 1879, e transpostas por um "copy-paste" para uma peça escrita hoje que abordasse os problemas de relacionamento de um casal não ficariam nada mal. Já as falas de Torvald Helmer, como a que se vê acima, estão bem presas ao século XIX.
Cena da Tarantela da peça "A Casa de Bonecas" de Ibsen, em montagem de Stepháne Braunschweig, no Théâtre de la Colline, em Paris, 2009. Mais uma mostra da atualidade de Ibsen
Na minha opinião, são as falas de ambos que indicam que Nora e Torvald opunham-se não apenas como personagens de marido e mulher, mas marcam a oposição de dois séculos ou de dois tipos de homem: o homem do século XIX e o homem moderno. Como bem observou a diretora e pesquisadora Tereza Menezes no excelente livro Ibsen e o novo sujeito da modernidade, na época de Ibsen, "era a própria noção de ser humano que estava em questão. O homem não podia ser reduzido a um objeto de investigação científica". (p. 27)
Segundo Tereza Menezes, a anacronia de Nora para a sua época era tão grande que o próprio Ibsen foi obrigado a escrever outro final, pois em particular na Alemanha as atrizes se recusavam a interpretar o fim da peça. Assim, ele fez um final em que Nora vê os filhos dormindo e desiste de ir embora.
Audrey Tautou como Nora, em montagem de Michel Fau, encenada este ano em Paris, que infelizmente recebeu péssimas críticas
Enquanto hoje Nora é extremamente admirada, Torvald Helmer caiu na obscuridade e basicamente situa-se nas prateleiras do século XIX. Que assim seja!
Montagem contemporânea da Casa de Bonecas, feita em Tromsø, Noruega, por Tyra Tønnessen, com Marte Germaine Christensen no papel de Nora e Tobias Santelmann, como Torvald. Foto Ola Røe.
Leitura altamente recomendável para quem deseja se aprofundar no autor e a sua relação com o Brasil. Organizado por Karl Erik Schøllhammer, professor de Literatura da Puc-Rio, o livro Henrik Ibsen no Brasil.
E aqui, um SERVIÇO DE UTILIDADE PÚBLICA: frases de Nora Helmer para quem quiser fazer uso delas a seu favor (todas da edição Veredas, traduzidas por Maria Cristina G. Cupertino):
"Olhando para trás, agora, parece-me que vivi aqui como vive a gente pobre, que mal consegue ganhar o seu sustento. Vivi das gracinhas que fazia para você".
"Devo tentar educar a mim mesma. E você não é o homem indicado para me ajudar nessa tarefa."
"Preciso estar só, para avaliar a mim mesma e a tudo o quanto me rodeia. Por isso não posso continuar a viver com você."
"Creio que antes de mais nada sou um ser humano, tanto quanto você...ou pelo menos, devo tentar vir a sê-lo."
"Só uma coisa eu sei: é que as minhas idéias divergem inteiramente das suas."
"Sinto-me esta noite mais lúcida e mais segura de mim do que nunca".
"Tornou-se evidente para mim que vivi oito anos nesta casa com um estranho, a quem dei três filhos...Ah, nem vou continuar falando para não ter que lembrar disso. Tenho vontade de partir-me em mil pedaços".
"Seria preciso transformarmo-nos os dois a tal ponto...que a nossa união se transformasse num verdadeiro casamento. Adeus."
A personagem Nora talvez seja a mais marcante de todas as fortes personagens femininas de Ibsen. Este cartaz aqui de uma montagem na Alemanha e mais um exemplo do quanto os temas propostos pelo dramaturgo através dela vem sendo encenados no teatro atual.