Catarina Wallenstein, como Luísa (!), em Singularidades de uma Rapariga Loura, filme de Manoel de Oliveira baseado em conto de Eça de Queirós. Para mim, ela seria a perfeita imagem de Luísa, de O Primo Basílio.
"Mas porque se afligia, por fim? Quantas invejariam a sua desgraça! O que havia de infeliz em abandonar a sua vida estreita entre quatro paredes, passando a examinar róis de cozinha e a fazer crochê, e partir com um homem novo e amado, ir para Paris! para Paris! viver nas consolações do luxo, em alcovas de seda, com um camarote na Ópera!"
(O Primo Basílio, Editora Abril, 2010, p. 278)
Este post é a continuação da série cujos textos são cozidos realizados em banho-maria, assim como os pudins descritos por Eça de Queirós, intitulada: Entre quatro paredes, o oponente como marido.
A jovem e loura lisboeta Luísa, de O Primo Basílio, é um caso particular da literatura do século XIX. Isso porque Jorge, seu marido, não pode ser considerado seu oponente. Não há uma só ocasião em que Jorge se volte contra ela, nem mesmo quando fica a par da verdade. A rigor, a empregada Juliana é a sua maior antoganista, porque a chantagea e é a causa de seus maiores tormentos físicos e espirituais. Em alguns trechos, o próprio amante se torna seu antagonista. Personagem mal-vista da literatura (até pelo próprio autor, que a menospreza inúmeras vezes no romance), considerada fútil, de caráter superficial, Luísa nunca alcançou uma glória de - digamos - Emma Bovary ou mesmo Capitu porque foi mal compreendida. Ela não se opõe a um homem, mas a uma situação.
Ricardo Trêpa, ator de Singularidades de uma Rapariga Loura, neto do diretor Manoel de Oliveira. Já disse no post anterior: a minha imagem ideal de Basílio é ele.
Tendo em vista a citação acima e muitas outras - inúmeras - passagens do livro, eu diria que Luísa se opõe ao mundo e este a ela. Deslocada da sua época e do seu destino, ela se perde em conjecturas de felicidades possíveis e impossíveis que a desestabilizam e a aniquilam, assim como um inseto sucumbe à luz da lâmpada. Ela tem, entretato, a meu ver, o (grande) mérito de tentar ir ao alcance dessas possibilidades. Ao se deslocar do seu "posto" de mulher casada com um ou mais amantes (como sua amiga Leopoldina), Luísa se perde em um vazio onde, para o autor, não há possibilidade de existir. São as tais "quatro paredes" aqui mencionadas nesta citação acima e direta e indiretamente em todos os livros abordados em outros posts desta série a real oposição à concretização da felicidade de Luísa. Em resumo, o genial deste livro é que Eça não opõe um personagem a outro (sequer Jorge e Basílio se tornam antagonistas em algum momento, sendo mais tratados como "parceiros" da mesma fêmea), mas, fiel à crítica social que deseja estabelecer, opõe o homem à sociedade pequeno-burguesa, origem dos males do século, e a sua instituição mais cara: o casamento.
A mesma atriz, Catarina Wallenstein, no mesmo filme citado acima.
As fotos deste post são todas do filme do Manoel de Oliveira, baseado em conto homônimo de Eça de Queirós, Singularidades de uma Rapariga Loura. Não li este conto, mas fiquei impressionada com a descrição da Luísa, protagonista dele (a tal rapariga loura) e a semelhança com a também loura e também Luísa, de O Primo Basílio.
Catarina Wallenstein, ainda como Luísa de Singularidades...
"[...] Era muito singular o temperamento de Luísa. Tinha o carácter louro como o cabelo - se é certo que o louro é uma cor fraca e desbotada: falava pouco, sorria sempre com os seus brancos dentinhos, dizia a tudo «pois sim»; era muito simples, quase indiferente, cheia de transigências".
(Singularidades de uma rapariga loura, Scribd, p. 7).
"Mas Juliana fazia-se tão serviçal, era tão calada, que Luísa pouco a pouco, dia a dia, com o seu caráter móbil, inconsciente, cheio de deixar-se ir, principiou a perder o sentimento pungente daquela dificuldade."
(O primo Basílio, Scribd, p. 236).
Só a título de conclusão, gostaria de trazer uma frase do crítico Paulo Franchetti, autor dos comentários desta edição da Coleção Abril que eu tenho:
"O que ele (o autor) sente como defeito neste começo de carreira literária será, ao longo do tempo, uma das maiores qualidades do seu estilo e uma marca da modernidade: a abundância de detalhes e o processo de composição cumulativo, em que a ação muito freqüentemente cai para o segundo plano, enquanto o mundo sensório e a arte da escrita e da ironia vêm para a frente da cena". (p. 519)
O mundo sensório de Eça de Queirós em que mergulhamos (como já comentei no post anterior "O bife do Basílio"), que nos infiltra os poros por todos os lados dessa ironia cáustica, audaciosa, precisa é o que, para mim, há de mais fascinante em O Primo Basílio.