Ruínas de Fordlândia, a cidade-fantasma criada por Henry Ford em 1927 na Amazônia.
O livro Fordlândia - ascenção e queda da cidade esquecida de Henry Ford na Selva bem podia levar o título do clássico romance de Joseph Conrad, Coração das Trevas, tal a similaridade entre as histórias e até mesmo entre os personagens. Entretando, o livro de Conrad é uma ficção que se passa no Congo Belga no final do século XIX, enquanto Fordlândia é o resultado de uma longa e detalhada pesquisa do historiador americano Greg Grandin. Lançado em 2009 - e em 2010 no Brasil, pela Record -, o livro foi finalista do Pulitzer na categoria História. A impressionante história será lançada em filme no próximo ano.
Casas em estilo americano em Fordlândia, com os jardins à frente: um imperativo de Henry Ford, que promovia workshops de jardinagem na cidade e concurso de melhor jardim.
Fordlândia é, antes de mais nada, uma história de fracassos. O fracasso de um homem - Henry Ford - o magnata da indústria automotiva que tentou construir uma cidade-modelo americana produtora de borracha no meio da selva amazônica; o fracasso de um grupo de empreendedores, que tentaram obviamente sem sucesso adequar o mundo a uma utopia e, por fim, o fracasso de um país - o Brasil - em estabelecer uma política que aliasse crescimento econômico com desenvolvimento social para a Amazônia. Citando incansavelmente fontes históricas e documentos, Grandin vai nos conduzindo, página a página, a um ambiente de desolação e perdas, um lugar mítico para a humanidade transformado hoje em terreno fértil da economia característica do terceiro mundo, que mescla capital estrangeiro e alta tecnologia com trabalho escravo, assassinatos e ilegalidades de todo tipo. Essa é a Amazônia hoje que, em muito, pode ser explicada pela sua história, como nos faz ver Grandin, detentor de diversos prêmios e professor de HIstória da Universidade de Nova Iorque.
Henry Wickham: o inglês responsável pelo roubo de 70 mil sementes de seringueira que derrubou o monopólio da borracha amazônica no mundo.
Fordlândia foi um capítulo à parte nessa história. Em 1927, o ciclo de ouro da borracha brasileira havia terminado a partir do roubo de 70 mil sementes de seringueiras pelo inglês Henry Wickham para levá-las para o Botanic Garden em Londres, em 1876. Pelos serviços prestados, a rainha Vitória lhe concedeu o título de Sir. Com o crescimento da indústria automotiva, o mundo necessitava cada vez mais da borracha e o governo do Estado do Pará percebeu que poderia oferecer terras gratuitamente a industriais do setor interessados em investir na região. Foi então que Henry Ford entrou na jogada. Em um lance cheio de "jeitinho brasileiro", com intermediários ganhando dinheiro por fora para "facilitar as coisas", Henry Ford acabou pagando por uma terra que iria de qualquer maneira receber de graça do governo, às margens do rio Tapajós, no Pará. O projeto inicial de produzir fazendas de borracha rapidamente foi deturpado para outro de recriar a América dos seus sonhos dentro da selva, com campos de golfe, sapatarias, barbeiro e carros Modelo T circulando pelas ruas. Obcecado com a ideia de fundar uma cidade industrial nos seus moldes, em que as pessoas bebessem leite de soja (ele era vegetariano), plantassem jardins, não bebessem álcool e não frequentassem prostíbulos, dançassem quadrilhas e polcas tradicionais aos finais de semana e, sobretudo, onde não houvesse sindicatos, ele enxergou no empreendimento a sua oportunidade. Nada podia dar certo.
Henry Ford no seu primeiro automóvel, construído por volta de 1898.
Henry Ford detestava especialistas, ele defendia o método empírico de erro e acerto, assim como ele próprio havia desenvolvido o seu primeiro automóvel. Por isso, recusou-se a contratar especialistas em botânica para auxiliar no trabalho de seleção e plantio das seringueiras. O resultado foi desastroso: a Hevea brasiliensis progredia muito bem em ambiente selvagem, onde as árvores cresciam muito distantes umas das outras. Mas não se davam bem se plantadas em monocultura, plantadas próximas, como foi feito em Fordlândia, pois tinham um predador natural de comia suas folhas e destruía a seringueira. O problema não ocorria nas plantações da Ásia, com as seringueiras traficadas por Wickham, porque lá não havia o predador natural da árvore, então elas puderam ser plantadas em larga escala.
Foto de trabalhadores de Fordlândia, 1934.
Assim como a plantação, o projeto de cidade também não progrediu. O primeiro problema foi conseguir mão de obra. Acostumados com um sistema de endividamento - em que gastavam mais do que ganhavam dos barões da borracha locais, os extrativistas sumiam assim que recebiam o primeiro salário. Eles voltavam para suas famílias, em algum lugar onde podiam plantar e subsistir da pesca e agricultura, sem ajuda de salário, pois muitos bens eram adquiridos por permuta. Ford não compreendia que o dinheiro na floresta não valia o mesmo que em Michigan. Depois, aqueles funcionários que ficavam começavam a se rebelar contra o excesso de intromissão em suas vidas particulares, determinando o que eles deveriam comer, o que fazer nas horas de folga, a que horas e quanto tempo deveriam trabalhar (na primeira insurreição que fizeram, três anos após a criação da cidade, uma das primeiras coisas que eles destruíram foi o relógio de ponto). Ford tentou inclusive estabelecer a lei seca em Fordlândia - que vigorava na época nos Estados Unidos, mas não no Brasil - , indo contra a legislação local. Mas os trabalhadores burlaram as leis frequentando bares e prostíbulos flutuantes, do outro lado do rio.
Contudo, Henry Ford persistiu. Ele construiu casas e ruas, um dos hospitais mais modernos do país, com equipamentos de última tecnologia. As casas tinham banheiros, água encanada, eletricidade, geladeiras, as crianças tinham escola de qualidade onde recebiam todo o material necessário para os estudos gratuitamente. Segundo Greg Grandin, foram gastos cerca de US$ 20 milhões de dólares na construção de Forlândia e de outra cidade vizinha, Belterra, perto de Santarém. Quando finalmente as seringueiras começaram a produzir algum látex, o preço da borracha brasileira era muito mais alto do que as seringueiras da Indochina e Malásia e os russos haviam desenvolvido a borracha sintética. No final da Segunda Guerra Mundial, o neto de Ford, filho do seu falecido filho Edsel Ford, Henry Ford II, assume os negócios da família e vende para o governo brasileiro as terras adquiridas pelo avô, que morreu sem nunca por os pés na Amazônia.
Fordismo detonado ao último grau: Greg Grandin derruba o mito de Henry Ford como um grande empreendedor visionário, para um genial mecânico megalomaníaco, que criou o sistema de otimização de tempo, reduzindo ao máximo os movimentos realizados pelos seres humanos, cujo tempo era cronometrado e controlado por vigilantes "seguranças" e desenvolvendo a "linha de montagem" inspirada em abatedouros da sua infância, em que as carnes passavam em ganchos pendurados. Ele também adotou como braço direito na companhia um ex-capanga que coordenava uma verdadeira polícia dentro da empresa, que surrava - e em alguns casos, matava - os funcionários indisciplinados. Abertamente anti-semita (ele comprou um jornal para atacar os judeus e os banqueiros de Wall Street que ele identificava como um só grupo) e anti-belicista ele foi obrigado a ver suas fábricas produzirem veículos e aviões para o governo americano durante a guerra. Ele derruba também o mito de que ele era um grande "humanista". Na verdade, ele tinha um excelente gerente de marketing que escrevia tudo para ele. Houve um rumor nos jornais, no tempo que ele era vivo, inclusive, que Henry Ford não sabia ler. Mas a verdade é que simplesmente ele não gostava de livros e desconfiava dos especialistas. Foi a grande ruína da Fordlândia, por exemplo, o fato de que ele se recusou a contratar botânicos especializados para o plantio da borracha.
Ford T na Amazônia. A borracha de Fordlândia nunca serviu aos automóveis Ford. Mas hoje, a indústria da soja, que desmata e explora as terras próximas à Belterra, está fornecendo um tipo de plástico feito da soja que será vendido a empresas automotivas e, entre seus clientes, está a Ford.
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