"Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia. /.../ Não papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado". (MA, p.46) Fonte da foto aqui.
Dando prosseguimento à série Meus amigos de papel, cujo "amigo" tratado na abertura foi o narrador proustiano, vou falar de um dos meus primeiros camaradas, o Conselheiro Aires, de Machado de Assis. Antes de mais nada, quero dizer que é um erro afirmar que Machado não é para ser lido por adolescentes, foi através da escola que eu o conheci (com a leitura obrigatória de Dom Casmurro, claro) e, a partir daí, procurei mais e mais livros dele. Achei na biblioteca da minha própria casa Esaú e Jacó e Memorial de Aires, entre outros, fiquei curiosa e, sem nenhuma informação sobre os livros, comecei a leitura pelo Memorial. Ora, esse é o último romance escrito por Machado de Assis e publicado no mesmo ano da sua morte, em 1908, e considerado o mais amargo de todos (botem aí o título no Google, é o que vai invariavelmente aparecer). Ocorre que eu tinha 16 anos quando li o livro e não achei nada disso e, não sei se foram as primeiras impressões que insistem em permanecer, eu o reli para fazer este post e novamente me diverti pra caramba.
"~Não lhe parece que ela é um anjo? (pergunta D. Carmo ao Conselheiro, sobre a bela Fidélia). Achei que sim; acharia mais se me fosse perguntado". (MA, p.59). Fonte da foto Allocine.
Claro, o livro traz reflexões de um homem maduro e narra a história de pessoas de idade que não têm filhos e acabam sozinhas. Mas a narrativa - e principalmente a companhia do narrador - faz tudo ficar mais leve e torna aceitáveis fatos difíceis de digerir. Nunca mais esqueci desse livro e desse personagem. No ano seguinte, mudei para o Rio de Janeiro e me lembro que uma das coisas que eu fiz foi pegar um ônibus e ir até o Catete e o Largo do Machado e passar pelos lugares onde menciona Aires no livro. Por exemplo: outro dia, estava andando pela rua do Ouvidor e logo pensei nele e nas suas reflexões sobre as pessoas e a vida.
Em Memorial de Aires, D.Carmo, que não tem filhos, "adota" a viúva Fidélia, assim como adotou o afilhado, Tristão. Os filhos postiços vão se apaixonar entre si e chamar a atenção do conselheiro. Eles são o símbolo da vida e da juventude, que o narrador parece admirar profundamente. Fonte da foto Allocine.
Mas vamos ao homem: Conselheiro Aires é o narrador de um romance anterior, de 1904, Esaú e Jacó, que relata a história de dois gêmeos inconciliáveis (falei desse livro no post sobre o escritor amazonense Milton Hatoum, aqui, em que vi referências a Machado). Depois, em Memorial de Aires, temos acesso a uma espécie de diário do Conselheiro. Trata-se de um diplomata aposentado, que regressou ao Brasil após mais de 30 anos de serviços no exterior, viúvo, sem filhos e, que no decorrer da história, recebe felicitações pelos seus 63 anos. O olhar atento e a percepção de diplomata culto o fazem perceber nas ações e mesmo nas expressões faciais e gestos das pessoas aquilo que elas de fato pensam e sentem.
O casal Aguiar seria a imagem da vida conjugal de Machado. Há até a semelhança entre os nomes: Aguiar - Assis, Carmo - Carolina. D. Carmo também tinha um cachorrinho muito querido já morto, e o casal Carolina e Machado também teve um bichon frisé adotivo. Aqui na foto, a portuguesa Carolina Augusta Xavier, a esposa de Machadode Assis. Diz-se dela que era culta e que apresentou Machado de Assis a escritores portugueses e clássicos ingleses. Fonte aqui.
E essa é a grande sacada de Machado: Aires, assim como Brás Cubas (de Memórias Póstumas de Brás Cubas) é um ser extra-narrativa. Brás Cubas tem um distanciamento natural porque já morreu e relata fatos passados. Aires tem também um distanciamento, porque é uma espécie de morto-vivo e relata fatos que, para ele, já não importam tanto. Já não espera nada da vida, a não ser ter uma morte tranquila. Até o interesse súbito gerado pela bela e jovem viúva Fidélia logo é pesado na profundidade da sua existência e apaziguado com uma frase de Shelley: "I can give not what men call love".
A primeira edição de Memorial de Aires, com dedicatória de Machado de Assis, seus óculos e sua caneta.
De fato, o distanciamento crítico do narrador é o que faz o charme do romance. Aires é incisivo em seus comentários e nada parece abalar sua sobriedade, exceto, eventualmente, a beleza de certas mulheres. Eis aqui alguns exemplos, como neste caso, quando o bancário Osório, secretamente apaixonado por Fidélia, precisa viajar à Recife, pois seu pai está doente:
"Os pais fazem muito mal em adoecer, mormente se estão no Recife, ou em qualquer cidade que não seja aquela onde os filhos namorados vivem perto de suas damas. A vida é um direito, a mocidade é outro; pertubá-los é quase um crime". (Memorial de Aires, p. 60)
"Nada há pior que gente vadia - ou aposentada, que é a mesma coisa; o tempo cresce e sobra, e se a pessoa pega a escrever, não há papel que baste". (MA, p.38)
E mais outro:
"Quando eu era moço e andava pela Europa ouvi dizer de certa cantora que era um elefante que engulira um rouxinol. Creio que falavam de Alboni, grande e grossa de corpo, e voz deliciosa. Pois eu terei engulido um cão filósofo e o mérito do discurso será todo dele". (MA, p.107)
Dizem que há muito do próprio Machado no Conselheiro, uma vez que os dados biográficos do personagem se assemelham muito aos do autor na época que escreveu o Memorial (na casa dos 60, víúvo e sem filhos). Aqui, uma espécie de constatação amarga do Conselheiro-Machado:
"Eu tenho a mulher embaixo do chão de Viena e nenhum dos meus filhos saiu do berço do Nada. Estou só, totalmente só". (MA, p.111)
E também:
"Eu deixei-me ir atrás daquela ternura, não que a compartisse, mas fazia-me bem. Já não sou deste mundo, mas não é mau afastar-se a gente da praia com os olhos na gente que fica". (MA, p.178)
Mas a ironia, até um certo sarcasmo e uma análise muito pessoal das situações é que dão o olhar do narrador do memorial.
Aqui, quando Tristão confessa ao conselheiro seu amor por Fidélia, ele escreve:
"Em seguida começou a desfiar as excelentes qualidades da moça. Ja lhe ouvira algumas e conheci-as todas, mas quando se trata com essa espécie de gente é preciso ter a maior indulgência do mundo". (MA, p.154)
Em resposta a um apelo da sua irmã, que desejava o contato de um leiloeiro vizinho do conselheiro:
"Preciso me lavar da companhia dos outros, ainda mesmo dela. Mando-lhe só dizer que o leiloeiro morreu; provavelmente ainda vive, mas há de morrer algum dia". (MA, p.53)
"Vou ficar em casa uns quatro ou cinco dias, não para descansar, porque eu não faço nada, mas para não ver nem ouvir ninguém, a não ser o meu criado José. Este mesmo, se cumprir, manda-lo-ei à Tijuca, a ver se eu lá estou". (MA, p.52)
O que torna a literatura de Machado atemporal, a meu ver, é o que destacou José Guilherme Merquior, no seu breve mais incisivo De Anchieta a Euclides, breve história da literatura brasileira (Topbooks, 1996). Para Merquior, Machado, junto com Pompéia e Euclides foram nossos grandes impressionistas, aqueles que escreviam um tipo de romance "profundamente ligado ao senso da perda de qualidade da existência" (assim como Henry James, Joseph Conrad, Marcel Proust). Aqui faço um alerta a quem guia seu discernimento literário pela internet e queria acrescentar o absurdo que é considerar Machado nosso primeiro "realista" e o pior: Memórias Póstumas de Brás Cubas, um romance escrito por um DEFUNTO, nosso primeiro "romance realista", portanto Merquior acerta em cheio quando o classifica de impressionista. Para Merquior "a grandeza de Machado consiste em ter posto os instrumentos de expressão forjados no primeiro Oitocentos a serviço do aprofundamento filosófico da nossa visão poética, em sintonia com a vocação mais íntima de toda a literatura do Ocidente." Ou seja, antes de Machado de Assis, havia uma quase completa - senão completa ausência de visão filosófica. Aqui não posso concordar 100%, pensando sobretudo em Augusto dos Anjos, mas sem dúvida, Machado de Assis foi nosso mais completo ensaísta da nossa prosa. Daí o grande valor de sua obra, sua permanência. Daí meu apreço eterno pelo Conselheiro Aires e outros personagens igualmente fascinantes.
Bibliô:
José Guilherme Merquior. De Anchieta a Euclides, Topbooks, Rio de Janeiro, 1996.
Machado de Assis. Memorial de Aires, Sedegra, Rio de Janeiro, 1961.
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