Imagem da capa original do Cravo bem temperado, de Bach, onde se lê, além do título: Prelúdios e fugas através de todos os tons e semitons, assim como terça maior e terça menor. Para o uso e proveito da juventude musical desejosa de aprender.
A obra do compositor Johann Sebastian Bach é conhecida pela clareza de expressão, riqueza de detalhes (típico do barroco e da música de contraponto) e pela sobriedade, afinal a música tinha um fim bem claro: servir ao infinito e à glória de Deus. Entretanto, há algumas peças que nos deixam intrigados, uma delas é esse Prelúdio n. XII do primeiro livro do Cravo bem temperado. Há até grupos de discussão na internet sobre esse prelúdio, em que as pessoas questionam se essa peça já não seria um prenúncio da música que viria depois. Há outras que afirmam que Bach a compôs após a morte súbita da sua primeira mulher, Maria Barbara Bach, aos 35 anos. Embora eu ache que a obra não se explica pela vida não há como negar que pode haver uma relação aí, assim como é o caso da Chaconne, também composta após a morte de Maria Barbara. Sempre achei que Bach tinha tirado a viuvez de letra, já que 18 meses depois se casou com Anna Magdalena Wilcken, uma jovem soprano (de apenas 23 anos!) com quem teve 13 filhos, além dos 4 sobreviventes que teve com Maria Barbara. Mas, ouvindo esse prelúdio, dei-me conta o quanto havia ali da dor mais profunda. Aqui, na interpretação de Jan Lisiecki, um talento de 17 anos do Canadá.
E aqui na interpretação bem mais dramática de Glenn Gould, que amava essa peça (nesse vídeo ele toca a fuga também):
O Cravo bem temperado é um conjunto de peças publicadas em dois livros contendo cada um 12 prelúdios e fugas em todas as tonalidades do então novo sistema temperado de afinação, constituindo um total de 48 peças. Como indica na capa, o livro 1 ficou pronto em 1722, embora os especialistas afirmem que Bach reciclou peças de um livro anterior - sendo pelo menos 11 versões precursoras dos prelúdios encontrados no Klavierbüchen für Wilhelm Friedemann Bach (O livro de teclado de Wilhelm Friedemann Bach, feito para o estudo do filho mais velho do compositor), datado de 1720. A obra é hoje considerada a torá dos músicos e é notório que Mozart, Beethoven, Brahms e Schumann a tocavam frequentemente. O prelúdio número 1 do livro 1 foi a base para a Ave Maria de Gounoud. Embora outros compositores tivessem feito peças baseadas no novo sistema tonal, Bach foi o primeiro a fazer para todas as tonalidades do sistema temperado.
A tradução em português de Das Wohltemperierte Klavier é pouco precisa, uma vez que "Klavier" em alemão da época significava vários instrumentos de teclado. Além disso, os especialistas afirmam que Bach diferenciava o órgão dos outros instrumentos pequenos de teclado, que seriam o clavicórdio, o pianoforte (precursor do nosso piano) e o cravo, embora este último fosse o seu predileto e aquele que ele dispunha em casa quando compôs a obra.
O novo sistema temperado propunha, a partir de estudos físicos e matemáticos, que entre um tom e outro fosse estabelecido um semitom, situado no meio (embora seja sabido que há diferenças nesses semitons). Se temos um dó sustenido, por exemplo, trata-se de um dó tocado um semitom acima. Se tocamos um dó bemol, é o dó um semitom abaixo. No sistema temperado portanto, o dó sustenido é, na prática, a mesma nota do ré bemol, mas isso não ocorre nos instrumentos não temperados (como o violino, por exemplo). Bach adotou o sistema temperado e de fato foi nesse sistema que nasceu e se desenvolveu o piano moderno. Antes desse sistema era impossível tocar em várias tonalidades juntas sem desafinar.
Tudo indica que Bach desejava criar uma obra que possibilitasse a seus alunos tocarem em todas as tonalidades do novo sistema, criando um universo próprio na música. A empreitada resultou na obra fundamental da música ocidental. Sem ela, não teríamos Mozart, ou Beethoven, ou Chopin. O curioso é que Bach nunca supôs que as peças deveriam ser executadas em público, ao contrário, elas foram feitas essencialmente com o objetivo didático. Enquanto ele foi vivo, O cravo bem temperado nunca foi interpretado em público e apenas 50 anos após sua morte foi publicado. Hoje porém formam um conjunto de algumas das músicas mais apreciadas nas salas de concerto no mundo todo.
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