New York City - foto de Teju Cole.
“Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.”
Walter Benjamin, Obras Escolhidas, ed. Editora Brasiliense, trad.: Sérgio Paulo Rouanet, p.226.
Em seu livro Cidade Aberta (Cia das Letras, 2012) o escritor, historiador de arte e fotógrafo de ruas (como se apresenta no seu próprio website) nigeriano Teju Cole nos faz um retrato bem diferente da Nova Iorque que estamos acostumados a ver. O próprio título do livro é ambivalente e adquire novos sentidos ao longo da narrativa: o de cidade multicultural e racial, cidade livre, democrática, cidade vulnerável, desprotegida e, por fim, o mais permanente, o de cidade-ferida.
O escritor Teju Cole emigrou para os Estados Unidos aos 17 anos, onde cursou História da Arte na universidade de Columbia. Fonte aqui.
Este era o livro do mês do meu grupo de leitura da Livraria da Travessa e foi uma grata surpresa, há muito tempo que eu não lia um romance contemporâneo tão marcante. O olhar de fotógrafo e historiador de arte pesou para a construção de uma narrativa que mais se assemelha a uma colagem de múltiplas imagens - o livro praticamente não tem enredo - e de uma permanente busca por uma imagem interior/anterior. Julius, o narrador, é um germano-nigeriano que cursa o último ano da residência em Psiquiatria no hospital Columbia Presbyterian em Nova Iorque, entre 2006 e 2007. Como antídoto para o seu trabalho psicologicamente estafante, ele começa a fazer caminhadas pela cidade. As caminhadas são preenchidas por encontros inusitados com as mais diversas pessoas e de reflexões sobre as paisagens a sua volta. Em diversos momentos, ele relembra a sua infância na África e há também uma breve passagem pela Bélgica, onde ele parte em busca da avó alemã. Julius é, contudo, menos uma pessoa do que um anteparo, ele é a lente pela qual entramos aos poucos na cidade de Nova Iorque, na África e na Bélgica.
A cidade é bem diversa da Nova Iorque de Seinfeld ou Friends, como ele afirmou em entrevista a Folha de São Paulo, quando esteve no Brasil este ano para a Flip. Um palimpsesto de ruínas, em que a tragédia do 11 de setembro veio apenas se somar às múltiplas camadas de terror que ainda hoje subsistem no meio dos altos edifícios, através de seus cemitérios, construções históricas, igrejas. Um exemplo é de quando ele visita o local onde havia as torres gêmeas:
"Antes de as torres desaparecerem, tinha existido uma frenética rede de ruazinhas que cruzavam essa parte da cidade. Robinson Street, Laurens Street, College Place: tudo isso tinha sido apagado nos anos da década de 1960 para dar lugar aos prédios do World Trade Center, e tudo isso agora estava esquecido. Também se foram o antigo Washington Market, os embarcadouros ativos, as mulheres desbocadas, o enclave de cristãos sírios que se estabeleceu aqui no final do século XIX. [...] E antes disso? Que trilhas da tribo lenape jazem enterradas sob os escombros? O local da catástrofe era um palimpsesto, como era toda a cidade, escrita, apagada, reescrita". (Teju Cole, Cidade Aberta, p.75)
A questão racial é bastante presente no livro. Julius vai ao cinema assistir O último rei da Escócia, e discorre sobre um outro filme do qual não gostou (evidentemente trata-se de O jardineiro fiel, de 2005):
"Outro filme que eu tinha visto [...] tinha me deixado frustrado, não por causa do enredo, que era aceitável, mas por causa da fidelidade do filme à convenção do homem branco bom na África. A África estava sempre esperando, um substrato para a vontade do homem branco, um pano de fundo para as suas atividades".´
(Teju Cole, A cidade aberta, pp.40-41)
Gaivota plana sobre a Estátua da Liberdade - imagem poética e trágica no início e no final do livro. Teria um sentido metafórico? Quando saímos em busca da liberdade, encontramos apenas mais e mais destruição. Fonte aqui.
E, por fim, uma das imagens mais belas do livro, que eu não tinha dado à devida atenção até chegar ao final, o das aves migratórias que Julius observa, tentando se colocar no lugar delas e imaginar como elas viam a nós, na cidade aqui embaixo. A resposta ao final é clara referência à tempestade do "Anjo da História" da análise de Walter Benjamin sobre o quadro de Klee - a concepção de Benjamin sobre a história é mencionada no livro mais de uma vez, nos encontros com um ex-professor oriental que ele visita constantemente. No final, há um detalhado relato de como centenas de aves de múltiplas espécies morreram aos pés da Estátua da Liberdade. O que vêem aqueles que pairam sobre nós - assim como o anjo de Benjamin - é essencialmente a destruição.