O quarto do escritor Marcel Proust no Musée Carnavalet, em Paris.
"Je laisse les gens de goût faire de leur chambre l’image même de leur goût et la remplir seulement de choses qu’il puisse approuver. Pour moi, je ne me sens vivre et penser que dans une chambre où tout est la création et le langage de vies profondément différentes de la mienne, d’un goût opposé au mien, où je ne retrouve rien de ma pensée consciente, où mon imagination s’exalte en se sentant plongée au sein du non-moi."
(Marcel Proust - Prefácio de Sésame et les lys, de John Ruskin, que Proust traduziu do inglês.)
“Quanto a mim, deixo para as pessoas de bom gosto transformar o seu quarto na própria imagem do seu gosto e de enchê-lo somente com coisas que ele pode aprovar. Eu, por minha vez, não consigo viver e pensar a não ser num quarto onde tudo seja criação e linguagem de existências profundamente diferentes da minha, de um gosto contrário ao meu, onde nada eu possa encontrar do meu pensamento consciente, onde a imaginação se exalte inteiramente mergulhada no não eu.” (Trad. Mario Fondeli).
Tenho um profundo apreço por objetos. Gosto de guardar coisas com e sem valor, novas e antigas; gosto de preservá-las, consertá-las, organizá-las, mantê-las vivas, funcionando ou expostas à admiração. Em resumo, não é um ter por ter, mas é um relacionamento com coisas que, para mim, estão longe de serem inanimadas. Por conta desse hábito antigo, identifiquei-me completamente com a narradora e o personagem central de Sobretudo de Proust (Editora Rocco, 2012).
O livro, de Lorenza Foschini, narra a história real de Jacques Guérin e a sua incansável busca pelo espólio material do escritor Marcel Proust, nos anos subsequentes à morte do autor de Em busca do tempo perdido. Entenda-se por espólio material basicamente tudo: dos manuscritos do célebre romance às cartas escritas por e recebidas pelo autor, fotografias, móveis, medalhas, bilhetes, abotoaduras, escova de cabelo, bengala e até o célebre sobretudo com o qual Marcel Proust não apenas ia a todo lugar, mas também se utilizava para se aquecer nas noites gélidas no seu quarto, quando trabalhava praticamente sem interrupções no seu romance, lutando contra o tempo que sabia ser curto para ele. Isso porque Jacques Guérin sentia-se na obrigação de proteger da destruição o que ele via como relíquias e que apenas ele, com sua persistência, conhecimento e dinheiro - ele já era um conhecido colecionador de manuscritos literários - tinha condições de fazer. E, de fato, se não fosse por ele, o museu Carnavalet não teria hoje condições de reconstituir o quarto de Proust tal qual ele era quando o escritor ali passou a maior parte dos seus últimos anos de vida, escrevendo uma das maiores obras literárias da humanidade.
Jacques Guérin: o mecenas da literatura. Graças a ele, temos o manuscrito de No Caminho de Swann. Fonte: The Paris Review.
O livro é uma delícia, consegui dar cabo dele em um vôo de três horas, em viagem recente. Lorenza Foschini é jornalista da RAI onde realizou diversos programas voltados para a cultura, além de haver escrito um livro sobre Proust - Ritorno a Guermantes (1988).
Proust, com o famoso sobretudo, em Évien, por volta de 1905. Fonte aqui.
Grande parte dele é dedicada às frustradas tentativas de aproximação de Jacques Guérin com Marthe Dubois-Amiot, a víúva de Robert Proust, irmão de Marcel, que havia herdado todos os objetos do irmão escritor antes de ele próprio falecer. A mesma obstinação que tinha Jacques em recuperar qualquer ínfimo resquício da vida de Marcel Proust tinha Marthe em destruí-las. Assim, perderam-se em uma grande fogueira, as cartas de amor de Proust e grande parte dos seus manuscritos literários. Para ela, segundo Foschini, uma burguesa tradicional, o cunhado fora um parente esquisito, que denegria o nome da família com seu comportamento bizarro e a sua homossexualidade. A única coisa que impediu mãe e filha de destruirem tudo foi o interesse financeiro (a sobrinha de Proust Suzy, filha de Marthe e Robert, é descrita como ainda mais venal e interesseira do que a mãe) .
Jeremy Irons e Ornella Muti, no filme Un amour de Swann, baseado na obra de Proust, de 1984.
Além da história do próprio Jacques Guérin - um abastado industrial da perfumaria, filho ilegítimo e mecenas das artes, igualmente homossexual - há diversas outras histórias paralelas da época de Proust e das pessoas que circulavam naquele ambiente.
Como o relacionamento entre os irmãos Proust, não muito abordado nas biografias do autor e que é de suma importância nesse livro, já que Robert passou a ser não apenas o herdeiro de Marcel, mas também aquele que foi responsável pela edição das obras póstumas.
Marcel (à direita) e Robert Proust, em 1880. Fonte aqui.
O encontro entre Robert Proust e Jacques Guérin é aliás um dos melhores momentos do livro.
"O médico está a par da admiração do jovem pelo irmão escritor e, para agradar-lhe, abre uma das quatro portinholas envidraçadas da estante e aponta para uma volumosa pilha de cadernos manuscritos amontoados de qualquer jeito: a obra completa de Marcel Proust, escrita à mão nas longas noites insones, está diante dos olhos de Jacques, arregalados atrás das espessas lentes de míope cuja leve armação dourada está sendo contínua e nervosamente ajeitada no nariz." (Lorenza Foschini, Sobretudo de Proust, pp. 27-28)
Lorenza constrói um livro que é misto de romance e jornalismo, de um lirismo e uma leveza que tornam esse um daqueles livros que não conseguimos parar de ler. O sobretudo velho e puído se torna simbólico de tudo o que existe em Proust e nele está aguardando para ser liberado, a sua efêmera e eterna existência, como ele próprio previu na última parte de Em busca do tempo perdido, no livro O Tempo redescoberto.
"Mais qu’un bruit, une odeur, déjà entendu ou respirée jadis, le soient de nouveau, à la fois dans le présent et dans le passé, réels sans être actuels, idéaux sans être abstraits, aussitôt l’essence permanente et habituellement cachée des choses se trouve libérée et notre vrai moi, qui, parfois depuis longtemps, semblait mort, mais ne l’était pas entièrement, s’éveille, s’anime en recevant la céleste nourriture qui lui est apportée."
(Proust, Le Temps retrouvé - chap. III)
"Mas que um som já ouvido, um olor outrora aspirado, o sejam de novo, tanto no presente como no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, logo se libera a essência permanente das coisas, ordinariamente escondida, e nosso verdadeiro eu, que parecia morto, por vezes havia muito, desperta, anima-se ao receber o celeste alimento que lhe trazem".
(Proust, O Tempo redescoberto, trad. Lúcia Miguel Pereira, Editora Globo, 1989, pp. 153-154).
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