Fonte da foto Mediapart, artigo Fous d'Emma (loucos por Emma).
"Quand mon roman sera fini, dans un an, je t'apporterai mon manuscrit complet, par curiosité. Tu veras par quelle mécanique compliquée j'arrive à faire une phrase."
Gustavo Flaubert, Carta à Louise Colet. (Fonte Bibliothèque Nationale de France)
"Quando meu romance estiver pronto, em um ano, eu te trarei meu manuscrito completo, por curiosidade. Tu verás por qual mecânica complicada eu consigo fazer uma frase."
Considerado o romance mais perfeito já escrito em todos os tempos, Madame Bovary traz tantos e tantos livros em um só. Poderíamos passar um ano fazendo posts apenas falando do romance e ainda faltaria assunto. Mas este blog aqui estava na dívida com Gustave, pois seus manuscritos estão disponíveis para quem quiser ver na web desde 2009, no site www.bovary.fr. Buscando um assunto interessante para escrever sobre ele, comprei o maravilhoso Flaubert's Parrot , de Julian Barnes (ou O papagaio de Flaubert, lançado no Brasil pela Rocco). Para completar, a despeito de ser uma pessoa mais cética do que eu gostaria, aconteceu uma daquelas coincidências enquanto eu estava lendo este livro: o clube de leitura que eu frequento na Travessa, escolheu em janeiro justamente...Madame Bovary (!), lançado pela Penguin (Companhia das Letras) no Brasil. (O que seria um indício de que não apenas eu penso em Gustave, mas Gustave pensa em mim??) MISTÉRIO!
Enfim, voltando a Barnes, no livro O papagaio de Flaubert, ele escreveu um capítulo intitulado "Emma Bovary's Eyes" (Os olhos de Emma Bovary). Nele, Barnes desanca a crítica especializada, através de uma situação prosaica: a constatação de que Flaubert descreveu os olhos de Emma ora azuis, ora marrons, ora negros, em momentos diferentes do romance, o que mostraria (segundo a crítica) um certo desleixo do romancista francês com seus personagens (será verdade que alguém teve a coragem de afirmar isso em uma palestra ou foi tudo inventado por Barnes?). Nesse capítulo mencionado, Julian Barnes, ou melhor Geoffrey Braithwaite, o narrador de O papagaio de Flaubert, vai mostrar o quão absurda é esse tipo de crítica, que ele chama de "bomba de efeito controlado": aquela que você detona em uma praia deserta, com apenas um cachorro por testemunha e que não afeta as outras partes do romance, o que obviamente colocaria em questão se a pretensão do crítico finalmente não seja apenas atrair os holofotes para si.
Aqui, um exemplo de uma página do manuscrito de Madame Bovary, mostrando o minucioso trabalho de Gustave Flaubert. Fonte: Édition des manuscrits de Madame Bovary de Flaubert.
Inspirada por Barnes, gostaria de falar não dos olhos, mas do corpo de Emma Bovary. Afinal, ela é o centro da narrativa e foi através das descrições tão precisas e detalhistas da pessoa física de Emma ou de partes do seu corpo que, por assim dizer, nós leitores conseguimos quase tocá-la, de tão real. Se seus olhos adquirem diferentes cores conforme os diversos sentimentos de Emma, seu corpo segue também, do início ao fim, um contínuo movimento de mudança como se, através da tinta preta no papel branco, Flaubert destacasse um ser pulsante e desejante, quem sabe aleatório como a própria vida.
Versão da BBC para Emma Bovary. Fonte aqui.
Vamos a alguns exemplos.
No primeiro encontro, quando Charles entra no quarto do pai de Emma e ela passa a ajudá-lo:
"Charles fut surpris de la blancheur de ses ongles. Ils étaient brillants, fins du bout, plus nettoyés que les ivoires de Dieppe, et taillés en amande". (Madame Bovary, Le livre de poche, 1983, p. 48)
"Charles ficou surpreso com a brancura das unhas dela. Estavam brilhantes, finas na ponta, mais limpas do que os marfins de Dieppe, e cortadas em forma de amêndoas." (Madame Bovary, Penguin Companhia, p. 91, 2011, trad. Mário Laranjeira)
No baile do castelo, cheio de sensações para o corpo de Emma:
"On versa du vin de Champagne à la glace. Emma frissona de toute sa peau en sentant ce froid dans sa bouche". (p.82)
"Foi servido champanhe no gelo. Emma ficou com a pele toda arrepiada ao sentir aquele frio na boca". (p.131)
Mais tarde, nos braços de Rodolphe:
"Elle se serrait contre Rodolphe. Ses yeux, pleins de larmes, étincelaient comme des flammes sous l'onde; sa gorge haletait à coups rapides; jamais il ne l'avait tant aimée".
"Ela se apertava contra Rodolphe. Os olhos dele*, cheios de lágrimas, faiscavam como chamas sob a água; sua garganta ofegava em pulsos rápidos; jamais ele a tinha amado tanto". (p.299)
(aqui eu acho que a tradução errou: seriam os olhos dela)
Aqui, seu sorriso íntimo, frente a um elogio de Léon:
"Mme Bovary détourna la tête, pour qu'il ne vît pas sur ses lèvres l'irresistible sourire qu'elle y sentait monter". (p.269)
"A sra. Bovary desviou a cabeça, para que ele não visse em seus lábios o irresistível sorriso que ela sentia subir até eles". (p.346)
E, por fim, uma das cenas mais lindas, a da extrema-unção, quando Gustave nos entrega uma despedida completa, literalmente, dos pés à cabeça de Emma:
"Ensuite, il récita le Misereatur et l'Indulgentiam, trempa son pouce droit dans l'huile et commença les onctions: d'abord sur les yeux, qui avaient tant convoité toutes les somptuosités terrestres; puis sur les narines, friandes de brises tièdes et de senteurs amoureuses; puis sur la bouche, qui s'était ouverte pour le mensonge, qui avait gémi d'orgueil et crié dans la luxure; puis sur les mains, qui se délectaient aux contacts suaves, et enfin, sur la plante des pieds, si rapides autrefois quand elle courait à l'assouvissance de ses désirs et qui maintenant ne marcheraient plus". (pp.357-358)
"Em seguida ele recitou o Misereatur e a Indulgentiam, mergulhou o polegar direito no óleo e começou as unções: primeiro nos olhos, que tanto tinham cobiçado todas as suntuosidades terrestres; depois nas narinas, ávidas de brisas tépidas e de odores amorosos; depois na boca, que se tinha aberto para a mentira, que tinha gemido de orgulho e gritado na luxúria; depois nas mãos, que se deleitavam aos contatos suaves, e finalmente na planta dos pés, tão rápidas outrora quando corria para a satisfação de seus desejos, e que agora não andariam mais". (pp.449-450)
Marcia,
lendo seu post dei-me conta que não lembro de praticamente mais nada de Madame Bovary. Outro detalhe, e já não tenho muita certeza, é que na época não gostei de Emma por ela não saber administrar dinheiro. Mas tudo isso é uma memória distante demais. Preciso ler de novo!
Posted by: Raquel Sallaberry | sexta-feira, março 30, 2012 at 09:43
Raquel, a primeira vez que eu li Madame Bovary foi aos 19 anos, eu simplesmente detestei Emma. Lembro que, na época, eu imaginava que se eu tivesse a infelicidade de ter uma mãe como a Emma, eu a detestaria para sempre. Mas, relendo o livro (acho que eu já li este romance umas quatro ou cinco vezes) e, com o favorecimento dos anos que passam e da maturidade que chega, consegui compreender finalmente quem ela verdadeiramente é. Releia o livro, pois você com certeza terá outra impressão. No que diz respeito a dinheiro, é um erro achar que Emma não sabia administrar, ao contrário, ela prova que é uma verdadeira mulher de negócios, consegue extrair dinheiro de todos os pacientes devedores do Charles, sem que ele saiba, consegue administrar a casa durante um bom tempo (enquanto ela quer, pelo menos). A ruína dela é menos por incapacidade e muito mais por um irresistível impulso à autodestruição, a carência de Emma é tão profunda que ela quer sempre mais, só para descobrir que nada lhe satisfaz completamente. Nesse sentido, Emma é bem moderna.
Posted by: MarciaCL | sexta-feira, março 30, 2012 at 12:09
Marcia,
Li Emma pela primeira vez há dois anos e, com seu post, fiquei com aquele gostinho de reler essa história tão minuciosamente contada por Flaubert. De fato, vendo os manuscritos do romance podemos perceber o quanto esse autor se entregou por completo na sua busca pela perfeição formal... É de fato uma obra impressionante. Pensando agora, realmente ele nos entrega a personagem de forma tão completa que quase podemos senti-la, de tão real. Adorei os trechos demonstrando esse fluxo de mudanças através das quais a personagem vai se desenvolvendo segundo seu próprio consciente e insconsciente... Fantástico! Belíssima a cena da extrema-unção! Pressinto que ainda vou mergulhar muitas outras vezes nesse romance...
Beijos
Posted by: Sofia | domingo, abril 01, 2012 at 15:50
Oi, Márcia, gostei muito do seu blog. Você tem toda a razão quanto a tradução errada. Claro, que são os olhos dela. O tradutor deu uma pequena cochilada...
Acho Emma uma mulher moderníssima, pelo simples fato de que ela sempre quis viver o seu "desejo", coisa completamente impossível no século XIX, principalmente dentro daquele contexto.
Quando Gustave Flaubert diz que "Madame Bovary c'est moi", acho que é exatamente por isto, pela postura "masculina" dela.
Aliás, os personagens masculinos do livro são frágeis.
A pulsão do desejo, quando não realizado, certamente leva a um comportamento autodestrutivo.
Felipe Pondé diz "o desejo é sempre triste. Apenas quem não o conhece o julga redentor" Diz, ainda que " o ciclo do desejo é um círculo infinito cuja esfera está em toda parte e o centro em parte alguma. Este movimento descreve o sem-fim do inferno humano" E eu acrescento, inferno este vivido plenamente por Emma Bovary.
Posted by: angelina | domingo, abril 01, 2012 at 20:23
Sofia, já li Madame Bovary algumas vezes e com certeza o lerei de novo. Aliás, Flaubert vale à pena reler várias e várias vezes. Estou com Educação Sentimental agora. Para mim, ele é como um "antídoto" contra a mediocridade. Quando a vidinha fica muito medíocre, muito no dia-a-dia, muito banal, apelo a ele e outros, como Proust e Jane Austen, que sempre me surpreendem e me tiram do "planisfério astral".
Posted by: MarciaCL | segunda-feira, abril 02, 2012 at 22:48
Angelina, que honra você visitando meu blog! Luiz Felipe Pondé diz coisas muito interessantes, gostei dessa observação dele. Gosto também de uma frase dele em uma entrevista quando disse que "envelhecer não é para covardes", tenho isso em mente muitas vezes. De fato, há pessoas que se consomem pelo desejo, é o caso de Emma e de muitas mulheres do século XIX principalmente, quando tinham que conviver com frustrações gigantescas, sem dar um pio. É claro que isso não podia fazer bem a ninguém. Um aspecto interessante nos comentários de Béatrice Didier na edição do Livre de Poche do meu Madame Bovary em francês é quando ela fala sobre o gozo de Emma. Ela diz que, para chegar a essa impressão no romance - como descrever o prazer feminino sendo um homem? - Flaubert confessou que fez uso de sua experiência com a eplepsia. Estranho, mas o resultado foi muito convincente! Ela dá também o exemplo da cena em que Emma está sendo amparada no quarto, após ter lido a carta de Rodolphe acabando tudo e escuta a carruagem dele saindo da cidade. Ela dá um grito e despenca no chão inerte. Béatrice Didier chama a atenção que esse é um quadro clássico de eplepsia. NESSE SENTIDO também é que Flaubert quis dizer "Emma Bovary sou eu", há muita coisa íntima dele na própria Emma.
Posted by: MarciaCL | segunda-feira, abril 02, 2012 at 23:09