Rainy day woman - fonte aqui.
"Mundo contou que no internato tinha pesadelos com a paisagem calcinada: a floresta devastada ao norte de Manaus. Visitara as casinhas inacabadas do Novo Eldorado, andara pelas ruas enlameadas. Casinhas sem fossa, um fedor medonho. Os moradores reclamavam: tinham que pagar para morar mal, longe do centro, longe de tudo..." (Cinzas do Norte, p. 148)
Este é a continuação da série sobre o escritor amazonense Milton Hatoum. Os primeiros posts podem ser lidos aqui: Milton Hatoum, Milton Hatoum II, Milton Hatoum III.
Cinzas do Norte (Cia das Letras, 2005) é o terceiro romance de Milton Hatoum. O livro obteve cinco prêmios: Prêmio Portugal Telecom, Grande Prêmio da Crítica/APCA-2005, Prêmio Livro do Ano da CBL, Prêmio BRAVO! de literatura.
De tom pessimista, o livro narra o declínio de uma família de ímpeto colonialista no cerne da Amazônia. Sem resvalar para o regionalismo caricato, a cidade de Manaus, com seus costumes, dialetos e cores, está no centro da narrativa. É a ela que se referem em grande parte as "cinzas" do título: construída sobre camadas históricas de destruição, ela representa um projeto nunca alcançado de cidade, que aqui pode ser ampliado para outros da América Latina. Grandes cidades densamente povoadas, banhadas por um coquetel de abandono, casuísmo e ditadores corruptos e esquizofrênicos, na periferia da civilização, elas implodiram no lugar de crescerem e se desenvolverem. São exemplares de uma sub-urbanidade fruto de uma política de explícito subdesenvolvimento.
Assim como em Relato de um certo Oriente Milton Hatoum havia feito uma analogia entre os gêmeos que se odeiam e o país divido entre Norte e Sul, em Cinzas do Norte, ele vai mais longe. A cidade fruto de uma civilização torta que é representada no romance pela decadência da família de Jano, o rico empreendedor local que, emblematicamente, não deixa descendência, é o retrato da própria desesperança. Mas as cinzas do título têm um duplo sentido. Por um lado, significam o declínio dessa região e, por outro, têm um sentido menos material. Como a palavra "Norte" tanto significa uma região geograficamente situada e também o "rumo", "destino", as cinzas do norte também significam a perda dos sonhos, a desilusão que, no romance, é representada por Mundo, que vê seus sonhos de se tornar artista destruídos pelo pai.
As capas das traduções do romance para alemão, inglês e francês: nelas (que pena!), a palavra "Norte" perdeu o sentido ambíguo, ficando apenas como posição geográfica, sendo substituída por "Amazônia" (bem mais atrativa no mercado externo, suponho).
O narrador principal do romance é Lavo (corruptela de Olavo), colega da escola de Mundo (Raimundo), filho de Jano (Trajano), um rico empreendedor de Manaus, e da sedutora Alícia, mestiça ambiciosa e volúvel. A história inicia na época da ditadura militar no Brasil. Os políticos e diversos empresários importantes da cidade frequentam a casa do pai de Mundo e são caricaturados na mão do filho, que almeja ser artista e despreza a sua situação de herdeiro. Mundo alimenta um ódio gigantesco pelo pai, em paralelo a um amor incomensurável e edipiano pela mãe. Lavo é um órfão que perdeu os pais em um naufrágio e é criado por uma tia costureira, Ramira, apaixonada secretamente por Jano, pai de Mundo. Com ela, mora seu irmão Ranulfo, um vagabundo boêmio, ex-namorado de Alícia a quem ela abandonou para se casar com Jano. Em terceiro plano, surge Arana, um artista plástico que se torna guru de Mundo.
Além da narrativa principal de Lavo, há o relato de Ranulfo, que conta a vida de Mundo em forma epistolar e que permeia toda a história e, ainda, as cartas do próprio Mundo, que escreve para Lavo e, em determinado momento, trechos de um diário seu durante um treinamento na selva, que é lido por Lavo.
Há muita coisa para se falar sobre o livro, mas eu ficaria em apenas três: a questão dos nomes, a água e a homossexualidade.
Alícia: a garota bonita do morro, sem nome e sem família, que sai da pobreza extrema por engravidar de um jovem herdeiro, é a principal defensora de Mundo, seu filho. (foto: Sasha Grey, em The Girlfriend Experience, de S. Soderbergh).
Eu não fiz nenhuma pesquisa além dos sites de consulta no google e uns livrinhos que eu tenho (sou adepta do estudo dos nomes), mas já dá para dizer algumas coisinhas:
1. Jano, o nome pelo qual Trajano é conhecido, refere-se claramente ao deus romano Janus, o deus das transições e dos começos, associado à portão, portais e ao tempo. Daí ser representado como uma figura de duas caras, uma olhando para o futuro e outra para o passado. O nome do mês janeiro e a palavra genitor referem-se a este deus. No livro, Jano é um rico empreendedor e proprietário de terras, que pretende incutir hábitos civilizados na população ribeirinha.
2. Mundo, apelido de Raimundo - o nome já diz tudo. Ele representa tudo o que não é local, mas universal. Mundo tem aversão ao universo mesquinho do pai e aos seus interesses e tem uma profunda simpatia pelos menos favorecidos. Pretende ser a voz que lhes falta e balançar as estruturas locais com a sua arte.
3. Alícia - esta é bem clara, aquela que alicia, que seduz.
4. Lavo - esse foi o que eu tive a maior dificuldade. Se alguém souber o significado desse nome (que não seja daquele joguinho eletrônico), por favor, pode escrever nos comments. A única coisa que eu achei próxima do significado dele no livro foi o romance de Abel Botelho, publicado em 1891, chamado Barão de Lavos, que é conhecido por ser o primeiro romance em língua portuguesa a tratar do homossexualismo.
A água - Alícia surge molhada da chuva na primeira vez no romance, quando vai matricular o filho no colégio onde Lavo estuda. Nessa cena, a beleza dela á ressaltada e há uma certa analogia dela com uma sereia, com a roupa colada ao corpo. Há outras cenas dela envolvendo água também. Depois há a cena de Mundo, quando se atira no chafariz na frente dos colegas e é ridicularizado por eles. Aqui a idéia é clara: mostrar que ele é um peixe fora da água, totalmente alheio ao mundo que o cerca (alguém lembra da cena da piscina de The Graduate, com Dustin Hofman?).
O homossexualismo - no romance, Milton Hatoum faz diversas insinuações (sobre a paternidade de Mundo, sobre as histórias de Ranulfo, sobre a biografia de Alícia etc etc). Muitas, são esclarecidas no final, menos esta: a relação de forte conotação homossexual entre Lavo e Mundo. Há diversas insinuações de que Mundo seria homossexual, mas nenhuma sobre Lavo, nenhum comentário (mas o livro é narrado a maior parte do tempo por ele). Não fica claro o que Lavo sente por Mundo, se é admiração, inveja ou atração ou tudo isso junto. Mas é, no mínimo, estranho que esse rapaz, por volta dos 18 anos, diante de uma farra regada a garotas de programa extremamente jovens, não manifeste nenhum tipo de reação - nem contra nem pró. Ele parece mais um ser assexuado, passa o livro inteiro sem sentir nada, além de uma obcessão por esse estranho amigo artista.
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