Stephen Dillane, como Karênin, na versão de 2000 de Anna Kariênina para a TV britânica.
Este post é o encerramento da série que eu intitulei Entre quatro paredes: o oponente como marido. Aqui, tratando de Anna Kariênina, de Liev Tolstói.
"Aleksiei Aleksándrovitch passara toda a sua existência a trabalhar nas esferas da administração pública, onde só lidava com os reflexos da vida. Toda vez que esbarrava com a vida real, ele a rechaçava. Agora experimentava uma sensação semelhante à de alguém que atravessa com tranquilidade uma ponte sobre um precipício e de repente se dá conta de que a ponte foi desmontada e que em seu lugar há uma voragem."
(Anna Kariênina, Liev Tolstói. Ed.Cosacnaify, trad. e apres. Rubens Figueiredo, p.151)
Li em diversos textos que Anna Kariênina seria um dos vários exemplos da atestada misogenia de Tolstói, fato que me deixou estupefata. Sim, Anna tem um triste fim (e há outros indícios que Tolstói apresentasse sinais do que hoje é considerado misogenia), mas alguém que tenha lido o romance sem essa idéia fixa na cabeça teria mesmo chegado a essa conclusão? Porque a minha impressão geral é que não há personagem mais sedutor, grandioso e indiscutivelmente vivo do que Anna Kariênina. Tal como Kitty e Vrónski, desde o início do romance, somos completamente absortos pela sua imagem, cada vez que Anna está em cena. A cada gesto, o jeito de andar, as roupas sóbrias, o olhar seguro, as palavras exatas: não há quem não se apaixone por Anna.
Dito isso, não é sem algum grau de simpatia que digo que Aleksiei Aleksándrovitch Karênin é o mais insosso, lamentável e medíocre marido-oponente desta série.
Helen McCrory, como Anna, e Kevin McKidd, como Vrónski, na versão de 2000 de Anna Kariênina para a TV britânica.
Como um dos objetivos de Tolstói era realizar uma oposição entre o campo - como lugar privilegiado - e a cidade - lugar das pessoas degeneradas - e que Karênin representa um dos ápices dessa degeneração: o homem burocrático (como é bem visível nessa citação acima), nada mais natural que ele seja assim condenado a uma existência compatível com a sua medicriodade.
Aleksiei Aleksándrovitch Karênin opõe-se à Anna Kariênina não apenas como marido, mas como ser humano. Enquanto ela existe, ou seja, é uma pessoa que respira, demonstra sentimentos, desejos e decepções, Aleksiei Aleksándrovitch é uma figura literalmente de papel. Feito sob medida para desempenhar com eficiência as funções de funcionário público, marido e homem da sociedade, Karênin esqueceu-se de como é ser um homem e até lhe incomodava a percepção de qualquer coisa que, segundo sua opinião, poderia torná-lo improdutivo, inseguro.
Há um livro de Hanna Arendt, chamado Eichmann em Jerusalém, em que ela descreve o julgamento do nazista, onde ela expõe sua teoria sobre a banalidade do mal. Aquele homem banal, medíocre, sem nada especificamente de grandioso ou mesmo monstruoso, atento às regras e à disciplina era a própria síntese do mal que aflige a humanidade. É possível que Tolstói tenha desejado traçar um retrato tão real quanto possível de um mal que ele já vislumbrava, que resultaria na degeneração da sociedade, sintetizado em pessoas como Karênin, tão desprovidos de humanidade quanto uma máquina.
Ficam aqui as palavras de Anna Kariênina, na tradução de Rubens Figueiredo, como reflexão sobre o assunto:
"Que homem torpe, ignóbil! E ninguém além de mim entende isso, nem jamais entenderá; e eu não consigo explicar. Eles dizem: um homem religioso, virtuoso, honesto, inteligente; mas não veem o que eu vi. Não sabem como ele sufocou a minha alma durante oito anos, sufocou tudo o que em mim havia de vivo, não sabe que ele nem por uma vez pensou em mim como uma mulher viva, que precisa amar. Não sabem como ele, a cada passo, me ofendia e sentia-se satisfeito consigo mesmo.[...] Mas o tempo passou e compreendi que não posso mais me enganar, que sou uma pessoa viva, que não sou culpada, que Deus me fez assim, com necessidade de amar e de viver."
(Anna Kariênina, Ed. Cosacnaify, trad. e apres. Rubens Figueiredo, p. 293)
Márcia, estava passando por aqui, porque me lembrei dessa série O OPONENTE... Talvez o romance Senhora de José de Alencar se encaixe muito bem na série. Acredito que para a época vale uma releitura em termos de direitos da mulher. Alencar é quase revolucionário quando coloca Aurélia como revanchista. Um abraço, Ladyce
Posted by: Ladyce | segunda-feira, maio 14, 2012 at 22:53