Foto do filme sobre o pintor norueguês Edvard Munch. Fonte: Moviemail
Este post é o segundo da série O Oponente como marido.
"Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também".
(frase do narrador em Dom Casmurro, de Machado de Assis, Ed. Globo, 2008, Cap. CII, p. 214)
Bento Santiago é, indiscutivelmente, o oponente mais singular da literatura do século XIX. Invertendo tudo, como do seu estilo, Machado de Assis inseriu o menos improvável (e confiável) dos narradores, dando-lhe não apenas a voz principal sobre os acontecimentos, mas intitulou o próprio livro com o seu apelido, ainda que fazendo a ressalva que tal título seria "provisório" e fora criado por um conhecido que encontrou no trem, já indicando uma primeira ironia: seu nome é dado por outros e é pelo olhar dos outros que ele existirá (os leitores, afinal, ele é o personagem fictício de um romance).
Apesar de Casmurro significar pessoa mal-humorada, é com um certo riso que Bento Santiago descreve a popularização do apelido entre seus amigos, que passam a utilizá-lo até em bilhetes carinhosos convidando-o para o jantar. O "Dom" remete a um outro personagem famoso da literatura, evidentemente, Dom Quixote. Mas, enquanto este lutava contra moinhos de vento imaginários, o Dom Casmurro do Engenho Novo debatia-se contra traições (que poderiam ou não ter sido imaginárias, como todos sabem).
Pintura Edvard Grieg, "Separation", 1896, Museu Munch em Oslo.
Ainda sobre nomes: é a futura esposa de Bentinho, Capitu, quem tem a amiga Sancha, feminino do fiel escudeiro de Dom Quixote, que posteriormente se casa com o melhor amigo de Bentinho, Escobar. Detalhe que poderia sugerir que Capitu é o duplo de Bentinho? Essa hipótese pode ser aceita levando-se em conta esta frase no início do romance, quando o narrador explica as razões do livro:
"O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo."
(Dom Casmurro, Ed. Globo, 2008, Cap. II, p. 41)
Como a citação indica, o livro seria sobre uma lacuna, algo impossível de ser preenchido. O Otelo Brasileiro (famoso título de livro de Helen Caldwell sobre DC) vê o mundo distorcido conforme o seu espírito.
A filha de Escobar e Sancha será chamada de "Capituzinha", pois foi batizada com o nome da amiga da mãe. E o filho de Bentinho e Capitu, será Ezequiel, o primeiro nome de Escobar, aqui sugerindo que haveria um casal entre Capitu e Escobar? Convencido que Escobar não é seu filho, Bento retrai-se e, inspirado pela peça Otelo, que assiste sozinho cheio de minhocas na cabeça, decide pela separação definitiva, pois o filho seria a comprovação para ele da traição:
Pintura Edvard Munch, "La Jalousie", 1896. Fonte aqui.
"Não me pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios lençóis". (Cap. CXXXV, p. 259)
Para mim, Dom Casmurro é mais que um livro sobre o ciúme, mas um verdadeiro tratado sobre a impossibilidade das relações humanas. Impossibilitado de viver, o narrador/alter ego de Machado de Assis escreve e a sobrevida do papel é a única que lhe resta. Não se trata de discutir se Capitu traiu ou não Bentinho (sobre a personagem, recomendo a leitura do excelente livro Quem é Capitu? da editora Nova Fronteira, com vários escritores). O que interessa, principalmente, é a história.
SUPER legal este livroclip feito pelo site homônimo, que fala sobre a pesquisa de Helen Caldwell, a primeira a duvidar de Bento Santiago:
Ótimo post! Machado gostava mesmo de fazer referência às suas influências por intermédio dos nomes das personagens. Em "Memorial de Aires", por exemplo, Tristão e Fidélia referem-se, provavelmente, às óperas "Tristão e Isolda", de Wagner, e "Fidélio", de Beethoven. E ao longo de toda a narrativa podemos encontrar outras referências a essas óperas. Com relação à Helen Caldwell, a pesquisa dela é muito lida e citada pelos estudiosos de Machado, mas já é também contestada por alguns. "Otelo" narra os ciúmes infundados do protagonista, alimentados pelo invejoso Iago. Note que no mesmo capítulo de Dom Casmurro, também intitulado "Otelo", o narrador toma consciência da trama e, mesmo sabendo que Desdêmona era inocente, ainda assim sai do teatro acreditando na culpa de Capitu. "O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público". E aqui está o ponto: Bentinho não se identifica com Otelo. Ao contrário, crê que Otelo se enganou ao culpar Desdêmona: "- E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; - que faria o público se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu?". Otelo não teve a possibilidade de enxergar a inocência de Desdêmona. Bentinho, por sua vez, viu a possível inocência de Capitu encenada à sua frente e, mesmo assim, condenou-a. Bentinho então seria o "Otelo brasileiro", como quer a Caldwell, ou o "anti-Otelo"?
Posted by: Agnes Rissardo | domingo, setembro 26, 2010 at 17:35
Há ainda uma outra questão: se Bentinho é o "Otelo brasileiro", Capitu seria, por analogia, a "Desdêmona brasileira". Inocente, portanto. Não me parece pertinente chegar a esse tipo de conclusão, uma vez que o valor de "Dom Casmurro" está na ambiguidade, na dúvida insolúvel que paira ao fim do romance.
Posted by: Agnes Rissardo | domingo, setembro 26, 2010 at 19:11
Agnes,
Obrigada pelos comentários ótimos! Eu concordo com você e só então percebi que esqueci de colocar o PONTO DE INTERROGAÇÃO no título, como era minha intenção inicial (ato falho, talvez...). Esse post era sobre o que eu estou chamando de "oponente" (se bem que todos podem ser questionados nesse ponto também), mas o fato é que me dediquei a analisar Bentinho. Sobre Capitu, eu propositadamente não quis falar, mas eu tenho a minha opinião sobre ela baseada em uma frase do livro que ela diz quando o Escobar morre. Mas Deus me livre de dizer o que eu penso dela aqui, vão tirar meu couro!!!!
Eu tinha acabado de reler Mamade Bovary e, na verdade, fiquei muito tomada pelas muitas coincidências entre os dois livros, sobretudo no que se refere ao diálogo com Dom Quixote e na relação - o tempo todo evidenciada - entre ficção e realidade. Mas eram projetos totalmente opostos - o de Machado e o de Flaubert, e eu particularmente gosto mais do nosso "bruxo".
ps: se você não leu o livro Quem é Capitu não deixe de ler, tem muita bobagem, mas muita coisa interessante (como o artigo do John Gledson). E o artigo do Millôr é de chorar de rir - ele usa apenas citações do próprio livro para provar que Bentinho era boiola! É hilário!
Marcinha.
Posted by: MarciaCL | domingo, setembro 26, 2010 at 19:43
Marcia,
Não sei se Capitu traiu Bentinho, mas sinceramente espero que sim!
Já fiquei doida para ler o artigo do Millôr...
Posted by: Raquel | sábado, outubro 02, 2010 at 12:28
Raquel, não deixe de ler, o livro todo é muito legal. Eu gostei muito do caráter multidisciplinar, sem aquele famoso "ranço" acadêmico que mais afugenta do que atrai leitores. E o artigo do Millôr é o melhor exemplo dessa diversidade de autores.
Posted by: MarciaCL | segunda-feira, outubro 04, 2010 at 15:18
Vejo muito de Otelo em Bentinho, mas nada Emma Bovary em Capitu.Acho que Bentinho é o retrato da própria personaldade machadiana que vê só defeitos nas mulheres menosprezando-as e talvez Capitu seja uma das únicas mulheres a quem ele tenha admirado e por isso criou todo este mistério envolvendo o tema. Isto não ocorre em Rita, D. Conceição, D. Severina, Genoveva e Virgília.
Posted by: Miriam | sexta-feira, novembro 05, 2010 at 00:01
Miriam,
Muito interessante sua observação. Tive (e tenho ainda: estou estudando O Primo Basílio para o próximo post) enorme tendência em falar das personagens femininas nestes autores, mas venho tentando me centrar apenas nos seus "oponentes". Obrigada.
Marcia.
Posted by: MarciaCL | sexta-feira, novembro 05, 2010 at 10:14