Os Crawford: o libertino e a femme fatale, os perigosos (e muito atraentes) oponentes de Mansfield Park. (Joseph Beattie e Hayley Atwell na versão para TV de 2007).
Antes de qualquer coisa, é necessário informar que eu sou totalmente apaixonada pela heroína de Mansfield Park, de Jane Austen, vide os posts deste blog intitulados Jane Austen e Política?, O (extra)ordinário destino de Fanny Price e Em defesa de Fanny Price. Dito isto, assumo a dificuldade que é falar pouco de MP, mas vou tentar me concentrar neste ponto que trata esta série: o Oponente. Ou, no caso de MP, os oponentes: os irmãos Crawford.
Mesma versão, com Billie Piper e Blake Ritson, como Fanny Price e Edmond Bertram
Como outros oponentes, eles surgem quando os personagens principais já nos foram apresentados e estão seguindo o curso de suas vidas. Mary vem para pôr à prova o caráter e o coração de Edmond Bertram; Henry seduz a todas as mulheres de Mansfield Park e finalmente se interessa por Fanny, aquela que "possui qualidades que ele nunca supôs existirem em um ser humano", enfim: o anjo que poderá (?) salvá-lo da danação.
"You have qualities which I had not before supposed to exist in such a degree in any human creature. You have some touches of the angel in you".
Frase de Henry para Fanny (MP, Penguin Classics, p. 318, Vol. III, cap 3)
A professora da Faculdade de Inglês de Oxford e especialista em Austen, autora do prefácio de MP das edições Penguin, das Memórias de Jane Austen pelo sobrinho e uma das principais responsáveis pelo projeto de digitalização dos manuscritos de Austen, Kathryn Sutherland, traz muitas reflexões interessantíssimas (considero essa uma das melhores introduções à MP). Em um desses achados, a professora Sutherland associa o lugar de Mansfield Park ao paraíso perdido e sugere que Fanny e Edmond seriam uma espécie de personagens modelares de uma certa idéia progressista da leitura do Evangelho dentro da Ingreja Anglicana. E que Fanny contribuiria diretamente para a corporificação do que Sutherland chama de a "Eva regenerada": ou seja, que Austen estaria estreitamente afetada por essa visão da mulher mais positiva dentro da sociedade da época, em oposição à imagem da "Eva degenerada" da Igreja Católica tradicional.
Possivelmente dois exemplos de "Evas degeneradas" que foram expulsas do Paraíso: as irmãs Bertram (aqui, Victoria Hamilton como Maria (à esqu) e Justine Wadell como Julia (à dir), na versão de 1999 de Patricia Rozema)
Eu recomendo a todos a leitura atenciosa dessa crítica da professora Sutherland que, infelizmente, eu não posso reproduzir aqui em detalhes, mas só queria dizer sobre os personagens de Henry e Mary Crawford que eles irão se opor aos personagens principais - Fanny Price e Edmond Bertrand - nesse sentido também. O detalhe é que em nenhum momento Fanny se deixa seduzir por Hery, nesse ponto concordo completamente com a professora Sutherland de que esta personagem representa uma espécie de meta da autora a ser alcançada e na qual é muito bem sucedida: Fanny Price resiste às tentações de um mundo decaído e finca os pés nos jardins do seu Paraíso Particular: Mansfield Park, a mansão da qual ela prova ser a genuína herdeira.
Na mesma versão de 99, Alessandro Nivola como Henry Crawford
Seguindo por essa linha, Henry e Mary são os anti-heróis não apenas dentro dos aspectos factuais da narrativa, mas eles se opõem à própria moral cristã do projeto do livro. A uma família (leia-se: sociedade) decadente, onde cada membro se perde em egoísmo, prazeres e irresponsabilidade contrapõe-se uma nova idéia de família e de sociedade, em que a mulher terá um papel preponderante, em que de dentro dos seus portões se observa aqueles que foram expulsos do paraíso (Mansfield Park).
Newby Hall, a locação de MP 2007 (Foto: Jane Austen Portugal).
"She could think of nothing but Mansfield, its beloved inmates, its happy ways. Every thing where she now was, was in full contrast to it. The elegance, propriety, regularity, harmony - and perharps, above all, the peace and tranquility of Mansfield, were brought to her remembrance every hour of the day, by the prevalence of every thing opposite to them here."
(MP, Penguin Classics, p. 363. Vol III, cap. 8).
Quando Fanny está de volta à casa dos pais, essas são as impressões que ela sente sobre Mansfield Park, sua casa adotiva e praticamente o paraíso na terra:
"Ela não conseguia pensar em nada além de Mansfield, seus queridos habitantes e seus hábitos agradáveis. Tudo no lugar em que ela estava mostrava-se em total contraste com isto. A elegância, a civilidade, a regularidade e a harmonia e, talvez, acima de tudo, a paz e a tranquilidade de Mansfield viam-lhe à lembrança a cada hora do dia, pela insistência de tudo oposto a elas aqui."
A título de fim: este é o último post sobre os Oponentes em Jane Austen (a série irá continuar posteriormente, porém voltada a outros autores). Só queria dizer porque não considerei Emma. Acho que esse é o único romance em que Jane Austen quebrou esse padrão de oposição, em que o possível opositor (Frank Churchill) é desconstruído como tal durante toda a narrativa. Deste modo, não saberia como encaixá-lo nesse esquema que, a meu ver, funcionou muito bem em outros romances da autora e de muitos outros autores do século XIX.