(essa e as outras fotos de divulgação do filme de Tim Burton de 2010)
"Wipe your glosses with what you know".
James Joyce
(trocadinho de Joyce com a expressão em inglês - wipe your glasses - limpar os óculos - a tradução literal deste jogo de palavras seria "enxugue os seus comentários com aquilo que você sabe" - if you ever read this, thank you, Matt!)
Este post é resultado da promoção do blog Fio de Ariadne sobre Lewis Carroll.
Pela sua insolência, lógica e independência espiritual, a personagem de Lewis Carroll Alice nos fascina até hoje, penso eu. Guardo com carinho a minha edição que o meu pai me deu quando eu era criança, com tradução (ou adaptação) do Monteiro Lobato, e também li a versão orginal quando fiquei mais velha. Posteriormente, comprei o "The annotated Alice", com as duas histórias - Alice no País das Maravilhas e Alice através do espelho - ilustrações de John Tenniel e comentários de Martin Gardner (minha versão é a de 95, com correções, a primeira edição é de 1960).
Bom, dito isto, vamos ao livro do Gardner.
Na introdução, ele lamenta o fato de que Alice tenha se tornado foco de pesquisas acadêmicas, uma vez que toda a leveza, a fantasia e o lirismo do livro estaria correndo o risco de ser engessado pelo discurso acadêmico. Entretanto, como ele mesmo lembra, nenhuma piada é engraçada o suficiente se você não a entende. E o caso de Alice é de um nonsense muito particular, escrito para leitores ingleses do século XIX, portanto é preciso expôr muitas coisas fora do texto para melhor compreendê-lo. Para escapar das explicações simplórias, ou políticas ou psicológicas do texto de Carroll, Gardner se preocupa em fornecer informações preciosas sobre certos personagens e episódios que, muitas vezes, estão mais ligados a um dito ou expressão popular de que o autor se aproveitou, do que a alguma obsessão ou paranóia de Lewis Carroll. Em resumo se ninguém duvida que o reverendo Charles Dodgson não batia lá muito bem da cabeça, esta condição não é suficiente para explicar uma obra em que foram aproveitados tantos símbolos da cultura e jogos de palavras presentes na língua inglesa, certamente não fundados por ele.
Para quem se interessa por Alice, eu recomendo a leitura da edição comentada por Martin Gardner. Aqui, eu fiz uma seleção de alguns trechos elucidativos, que eu considerei relevantes (eu dei os títulos):
O BURACO
No tempo de Carroll, havia uma especulação de toda parte sobre o que aconteceria se alguém caísse em um buraco que desse no centro da terra. Plutarco fez essa pergunta, além de outros pensadores, como Francis Bacon e Voltaire. Galileu, em 1842, no seu Dialogo dei Massimi Sistemi, Giornata Seconda, deu a resposta correta: o objeto cairia em velocidade crescente, mas em aceleração descrescente até atingir o centro da terra, quando a aceleração seria igual a zero. Então, ele iria diminuir a velocidade com desaceleração crescente, até atingir a abertura do outro lado, e cairia de novo. Ignorando a resistência do ar e a força centrífuga da rotação da terra, o objeto iria oscilar de um lado a outro para sempre. Mas a resistência do ar eventualmente traria o objeto para o estado de repouso no centro da terra. Gardner demonstra como Carrell era fascinado por estas idéias, através de um texto anterior (Sylvie and Bruno).
A queda no centro da terra como recurso de entrada em uma terra fantasiosa foi utilizado por outros escritores, especialmente Frank Baum, no seu Dorothy and the Wizard of Oz.
QUEM OU O QUE SOU EU? - QUESTÃO DE IDENTIDADE
A primeira sensação de vertigem que Alice tem no novo mundo é uma questão de identidade. Mas, ao invés de divagar em subjetividades, como toda criança, ela se apega a dados factuais, tais como o aspecto físico, idade e exemplos de conhecimento adquirido por ela, que outra pessoa talvez não tivesse. O trecho é uma delícia:
"If I'm not the same, the next question is, 'Who in the world am I?' Ah, that's the great puzzle! And she began thinking over all the children she knew that were of the same age as herself, to see if she could have been changed for any of them.
I'm sure I can't be Mabel, for I know all her hair goes in such long ringlets, and mine doesn't go in ringlets at all; and I'm sure I can't be Mabel, for I know all sorts of things, and she, oh, she knows such a very little! Besides, she's she, and I'm I". (p. 37)
Gardner destaca o fato de que alguns especialistas em Carroll notaram que, se a letra M de Mabel é trocada e colocada no final de Ada, tem-se Adam e Abel (Adão e Abel).
Menos filosófico do que pensamos talvez é a pergunta que a largarta faz para Alice.
Gardner revela que alguns anos antes de Carroll escrever o seu primeiro livro de Alice uma mania tomou conta de Londres, que era a de as pessoas andarem pela cidade fazendo a pergunta: Who are you? (quem é você?)
A fonte foi o livro de Charles Mackay Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds (1841). Gardner observa que Mackay menciona o fato de que a frase "pulava como um cogumelo" (a lagarta de Alice está sentada em um) e que Lewis Carroll dispunha de uma edição de 1852 deste livro.
Em Alice's Adventures Underground (uma versão anterior do livro) a lagarta diz à Alice que a cabeça do cogumelo irá fazê-la crescer e que a base, diminuir. Gardner cogita que Carroll pode ter lido alguns dos inúmeros tratados que falavam das propriedades alucinógenas dos cogumelos, no que concerne à tamanho e distância.
(ilustração original de John Tenniel para o livro de Lewis Carroll, Alice's Adventures...)
Loucura e sonho
Um aspecto muito importante da fala do Gato é destacado por Martin Gardner. Quando ele diz para Alice que todos ali são loucos, inclusive ela, senão, não estaria ali:
"We're all mad here. I'm mad. You're mad."
"How do you know I'm mad?" said Alice.
"You must be", said the Cat, "or you wouldn't have come here."
Gardner compara a fala do Gato a um texto escrito por Carroll no seu diário, em que ele diz:
"Pergunta: quando sonhamos e, como acontece com freqüência, temos uma fraca consciência do fato e tentamos acordar, nós não dizemos e fazemos coisas que estando acordados, seria insano? Não poderíamos às vezes definir a insanidade como uma falta de capacidade de distinguir entre a vida acordada e a vida onírica?" (p. 90 - nota 8)
Em suma, trata-se de um livro fantástico e, para quem deseja se aprofundar, recomendo com toda veemência essa edição comentada pelo Gardner, ele que é um matemático formado em filosofia e considerado um ultra-especialista em Lewis Carroll.