Cena do filme L'armée du crime (Exército do Crime), que se passa durante a Ocupação na França, lançado em 2009.
Cara-a-cara com a História
Após uma semana de cão, volto à Semana Modiano, minha pequena série sobre o escritor.
Entender o que se passava na França no período entre guerras, averigüar a extensão do notório antissemitismo francês, conhecer um pouco mais a fundo as famílias da alta burguesia judaico-francesa e suas relações com a sociedade estabelecida, bem como o ambiente intelectual e político da época eram aparentemente as motivações de Patrick Modiano ao realizar a entrevista com o historiador, jornalista e escritor Emmanuel Berl, que resultou no livro Interrogatoire (Interrogatório), publicado pela Gallimard em 1976. Porém o livro se torna mais do que isso - Modiano consegue seguir a linha de pensamento de Berl de tal maneira que o relato se aproxima mais e mais do trecho autobiográfico publicado em anexo à entrevista - Il fait beau, allons au cimitière (Faz sol, vamos ao cemitério).
"Je crois que je l'ennuie quand je le fais parler du passé - ce passé qui me captive et dont il reste un des derniers témoins. Berl préférait parler de l'avenir. Il n'a pas de chance avec moi, lui qui est beaucoup plus sensible à l'espérance qu'à la nostalgie". (Patrick Modiano, na Introdução de Interrogatoire)
("Acho que o incomodo quando faço com que ele fale do passado - esse passado que me atrai e do qual ele permanece uma das últimas testemunhas. Berl preferiria falar do futuro. Ele não teve mesmo sorte comigo, sendo muito mais sensível à esperança do que à nostalgia").
Nascido em 1892 na alta burguesia judaica na França, com parentesco com Bergson e Proust (pelo lado materno), Emmanuel Berl é de fato um retrato de uma época, vivendo até 1976. Ele lutou na Primeira Guerra Mundial, escreveu dois discursos de Pétain, fundou o primeiro jornal de esquerda do pós-guerra, foi amigo de Aragon, Drieu La Rochelle e Malraux, a quem dedicou a sua obra Mort de la pensée bourgeoise (Morte do pensamento burguês). Durante a Ocupação ele sai de Paris e, junto com sua esposa, a cantora Mireille, vai para Argentat, onde redige Histoire de l'Europe.
Infelizmente, o Interrogatoire não foi lançado em português (que eu saiba), mas quem sabe francês ganha muito lendo essa entrevista.
Entre muitas e muitas pérolas, eu destacaria quando Berl comenta o fato de que os judeus franceses estavam tão acostumados com um antissemitismo perpétuo (e, segundo Berl, "inócuo" - afora o affaire Dreyfus, claro!), que não se deram conta de que o antissemitismo nazista era de outra ordem e foram de fato surpreendidos por tal violência.
Minha opinião é que essa é uma declaração no mínimo contraditória, mas há muito desses aforismos tortuosos na entrevista.
Segundo Berl, o antissemitismo francês não era diferente de tantas outras xenofobias cultivadas pelos franceses, e que resultava, em última instància, em proibir a entrada dos judeus no Jockey Club, o que poderia ser considerado inócuo por se considerar que eles nunca tiveram acesso a este ambiente de qualquer forma (à exceção de Charles Haas, que foi modelo de Swann para Proust e era considerado em 1828 pelo Consistoire "um dos israelitas mais proeminentes de Paris"). Não se pode deixar de concordar que há uma nuance aqui, mas ao ponto de chamar de inócuo eu não sei...
Ah! Tinha esquecido, uma observação que Berl faz sobre os "nomes" pelos quais os judeus eram chamados naquela época na França dependiam do status social da pessoal Por exemplo, ele próprio e a sua família, eram chamados de "Israelitas", e a palavra "judeu" seria considerada abaixo dessa alta-burguesia, portanto, já pejorativamente.
Filme L'Affaire Dreyfus, sobre o oficial judeu que foi injustamente acusado de traição e, posteriormente, perdoado, tendo como conseqüência a exposição em alto-relevo desse "antissemitismo branco" perpetuado pelos franceses, uma vez que o caso dividiu o país entre os "dreyfusards" e "anti-dreyfusards" e mostrando que de inócuo o antissemitismo francês não tinha nada.
"C'est ce qui nous a tellement trompés dans l'antisemitisme hitlérien. Moi, j'étais habitué à considérer que l'antisémitisme est une réalité, que c'est comme ça, qu'il n'y a pas lieu de s'en étonner puisqu'il a la germanophobie en France, et dans le Nord le mépris de gens du Midi, etc. Je ne pensais pas du tout que ça pouvait prendre les formes terrifiantes que ça a pris avec Hitler..." (Berl, p. 17)
"Foi isso que nos confundiu no antissemitismo hitleriano. Eu era tão acostumado a considerar o o antissemitismo uma realidade, que isso é assim mesmo, não há porque ficar chocado, uma vez que há a germanofobia na França, e no Norte, o desprezo pelas pessoas do Mediterrâneo etc. Eu não acreditava que isso tomaria a forma aterrorizante que tomou com Hitler..."
Em outra ocasião do livro, Emmanuel Berl relata uma das conversas que teve com Proust (com que começou a se corresponder quando estava na guerra). Essa conversa foi sobre a problemática do amor para Proust:
"Il (Proust) considérait que l'amour ne pouvait être que malheureux, qu'il ne pouvait engendrer que la jalousie, que la jalouisie était utile parce qu'elle vous faisait vous intéresser aux autres, que normalment vous ne pensez à peu près à rien. [...] Il croyait d'autre part qu'une espèce de loi fait que la vérité échappe toujours aux jaloux. Swann n'arrive jamais à connaître les amants qu'à eus Odette et M. de Charlus les récite par ordre chronologique, comme on récite la liste des rois de France. [...] Par la jalousie et par la souffrance, il perd sa futilité et devient capable de produire une oeuvre, d'être un écrivain, au lieu de courir les salons. Donc, l'amour vous sauve. Sans lui, ce serait encore pire." (Berl, p. 29)
"Ele (Proust) considerava que o amor era só infelicidade, uma vez que só poderia gerar o ciúme, mas que o ciúme era útil porque fazia com que você se interessasse pelos outros o que, em geral, você nunca fazia.[...] Por outro lado, ele acreditava que há uma espécie de lei que faz com que a verdade escape sempre à pessoa ciumenta. Swann jamais consegue descobrir quem foram os amantes de Odette enquanto o sr. de Charlus os recita por ordem cronológica, como se recita os reis da França. [...] Pelo ciúme e pelo sofrimento, ele (o ser ciumento) perde a sua futilidade e se torna capaz de produzir uma obra, de ser um escritor, ao invés de passear pelos salões. Portanto, o amor salva. Sem ele, seria ainda pior." (Berl, p.29)
Jeremy Irons e Ornella Mutti como Swann e Odette, no filme Un amour de Swann, de Volker Schlöndorff. Eu acho que qualquer pessoa que efetivamente leu Proust fica extremamente decepcionado com este filme, a despeito do cast fabuloso.
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