Para que serve o Carnaval, senão para botarmos os clássicos em dia? Como havia acabado a leitura de Jane Eyre, de Charlotte Brontë, em janeiro para o grupo de leitura Chá com Jane Austen, resolvi assistir às versões do filme (pelo menos a de 1944, com o Orson Welles, e a de 2006, da BBC). Vou pular a de 1996, do Zeffirelli, com William Hurt (ui!) no papel de Rochester.
E, como boa capricorniana, dedico um post a cada versão. Começando pela de 1944, "a do Orson Welles", como é mais conhecida. A produção da Fox tinha como roteiristas (oficiais) John Houseman, Aldous Huxley, Henry Koster e Robert Stevenson. Este último, também era o diretor. Consta porém que Orson Welles palpitou tanto que houve dúvidas em como creditá-lo (o estúdio ofereceu o título de "co-produtor", mas ele recusou), segundo o release deste John Puccio que vos copio no original aqui. É dele também a informação que me deixou de queixo caído, porém não tão surpresa, de que há nada menos que 18 adaptações de Jane Eyre (só me restam 15 para assistir, já que, como eu disse, vou pular a do Zeffirelli). Êta livro bom! Porém vou discordar da opinião dele (e de muitos outros) de que essa seja a melhor versão de Jane Eyre já feita. Só quem nunca leu o livro na íntegra (convenhamos, muita gente pára no meio e vai assistir às "versões") pode achar isso. Talvez seja a menos pior.
O cast era o seguinte: Joan Fontaine (Jane Eyre), Orson Welles (Rochester), Peggy Ann Garner (Jane criança), Elizabeth Taylor (Helen Burns), Agnes Moorehead (Sra. Reed), Margaret O'Brien (Adele), Henry Daniell (Brocklehurst), Hillary Brooke (Blanche Ingram).
Mas vamos ao filme e seus problemas:
Primeiro de todos: não, eu não achei o Orson Welles perfeito para o papel de Edward Rochester (saca a foto à esquerda). Acho que ele encaixava-se facilmente em muitos papéis de homens másculos e diabólicos. Mas, em primeiro lugar, ele não tinha o physique du rôle daquele que é, possivelmente, um dos mais (senão o mais) sensuais personagens masculinos da literatura do século XIX.
Independente do aspecto mitológico/simbólico, aquela cena em que Rochester aparece no romance é um exemplo do aspecto sensual do personagem. Vide o seu duplo (um cão enorme) e a visão que antecede a sua aparição real:
"It was exactly one mask of Bessie's Gytrash - a lion-like creature with long hair and a huge haid: it passade me, however, quietly enough; not staying to look up, with strange pretercanine eyes, in my face, as I half expected it would" (aqui falando do cão), e "The horse followed - a tall steed, and on its back a rider. The man, the human being, broke the spell at once", (falando do Rochester).
Esse primeiro encontro, como eu já havia comentado no meu post sobre o livro, parece uma luta corporal, e antecipa muito do que irá acontecer na relação entre eles.
O segundo problema do Orson Welles, para mim, está na medida da atuação. Talvez Edward Rochester seja o único personagem realmente irônico em todo o livro. O aspecto trágico da vida dele é de certa maneira aliviado por uma excentricidade que reflete a ironia bastante cáustica de Charlotte Brontë. Mas que dá muito sabor ao livro e, como Jane é a única que de fato "responde" a esta ironia, o efeito é de uma troca de farpas saborosamente eletrizante entre eles. Já o Rochester do Orson Welles é muito pesado para causar este efeito, porém pareceu-me que serviu de base para o Rochester de Toby Stephens (BBC, 2006), como aliás muita coisa deste filme serviu de base a esta última versão da BBC.
Deve-se entretanto à presença de Welles no filme muito da força dele. Há extras no DVD tentando descobrir o que ele de fato teria feito. Por exemplo, algumas tomadas tipicamente de Orson Welles, como as tomadas de abertura, o contraste de preto e branco da fotografia, o constante uso de silhuetas, a tendência para tomadas longas e amplas em espaços fechados, a câmera distorcendo o tamanho real dos objetos, etc. Há também algumas características tipicamente Welleseanas no roteiro, como alguns personagens falando sobre Rochester muito antes de ele aparecer.
Porém o roteiro, a meu ver, foi muito sacrificado (coisa normal em adaptações), tendo a primeira parte consumido uns cinco minutos e reduzido a importância da srta. Temple, figura fundamental na formação da futura Jane Eyre, a zero, além de localizar toda a amizade entre Jane e Hellen Burns (interpretada por uma lindíssima Elizabeth Taylor criança) em uma troca de brincadeiras, enquanto Hellen será uma presença marcante da personalidade de Jane para toda a vida.
As fortes qualidades do filme, a meu ver, estão, além do "dedo" de Orson Welles na produção, na presença da própria Joan Fontaine como Jane Eyre (embora talvez um pouco bonita demais para o papel, mas com uma atuação que ressalta muito da força interior da personagem) e na incrível menina que faz a Jane criança, Peggy Ann Garner.
No geral, acho que a intenção era fazer um filme gótico que respeitasse o mesmo conceito de Rebecca (1940), de Hitchcock, que ganhou dois Oscar, inclusive de melhor filme, e foi nomeado para outros 11. Foi convocada a mesma atriz (Joan Fontaine), utilizada a mesma narração (pela própria Fontaine), o mesmo cinegrafista (George Barnes) de Rebecca e nota-se bastante do clima de thriller gótico tanto no uso do forte contraste entre sombras e luz, a casa (ou castelo) com as portas batendo, o ruído do vento semelhante a sussurros e por aí vai.
Mas, acho que vale como registro histórico e para os fãs de Orson Welles.
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