Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
Fernando Pessoa
Em resumo, a história de Fanny Price em Mansfield Park é a seguinte: ao se casar com seu pai, a mãe de Fanny Price fatalmente decai alguns níveis na escala social em que foi situada ao nascer. Uma irmã sua, ao contrário, casa-se com um nobre rico, Sir Tomas Bertram, e ascende na mesma escala. Embora já tivessem quatro filhos (dois meninos e duas meninas), os parentes ricos decidem apoiar o casal menos favorecido, levando para morar com eles uma de suas inúmeras crianças. A escolhida é a menina de 10 anos, chamada Fanny. Além dos tios e dos primos, Fanny convive com uma segunda tia, que mora junto aos Bertram e se dedica a ajudar na educação das crianças. A tia Norris toma como um de seus deveres, além de tirar proveito próprio da abundância de Mansfield Park (embora busque sempre enfatizar sua preocupação com a economia), fazer com que Fanny Price saiba ONDE é o seu lugar. Ou seja: ela vive espezinhando a garota, lembrando-a de que é uma agregada por lá e que nada fez ou faz para merecer tal ato de bondade. A menina cresce nesse ambiente e se mostra pessoa extramente tranqüila, prestativa e sensata, o que, em geral, aborrece os leitores que são fãs da ousada Lizzy Bennet.
A jovem de 19 anos Fanny Price, heroína de Mansfield Park, tem, a meu ver o grande mérito de não ser outra coisa diferente de Fanny Price, por mais devagar que a personagem possa parecer. Por exemplo: ela não tem a excessiva ingenuidade de Catherine Morland (Northanger Abbey / A Abadia de Northanger), o total auto-controle de Elinor Dashwood (de Sense and Sensibility / Razão e Sensibilidade) e, principalmente, a corajosa impetuosidade de Lizzy Bennet (Pride and Prejudice / Orgulho e Preconceito). Se há alguma personagem de Jane Austen parecida com Fanny Price, eu diria que, em alguns aspectos, ela se parece muito com Anne Elilot, de Persuasion / Persuasão. Entretanto, enquanto para Anne o relógio gira ao contrário - Persuasão poderia muito bem se chamar Arrependimento e Dor - para Fanny Price, o tempo parece ter parado. O seu maior desejo é de continuidade e basicamente este é o SEU final feliz: tudo mudou, mas tudo continuou a ser o que era.
A gritante semelhança entre ambas, pode ser detectada também nessa crítica de Harold Bloom sobre Anne Elliot, que caberia como uma luva na descrição de Fanny Price:
"Anne Elliot, a quietly eloquent being, is a self-reliant character, in no way forlorn, and her sense of self never falters." (1995, p. 237).
"Anne Elliot, um ser extremamente eloquente, de caráter auto-confiante, de modo algum desolado, e cuja presença de espírito nunca falha."
E, ainda, o comentário que H. Bloom faz sobre o tipo de comunicação constantemente oblíqua que ocorre entre Anne Elliot e o Capitão Wentworth, pode-se dizer que ocorre também do mesmo modo entre Fanny Price e seu primo Edmond Bertram. Como, por exemplo, no caso do colar que ela precisa para poder usar a jóia que seu irmão havia lhe presenteado no baile que seu tio daria. O fato de ter que ir ao baile com o pingente preso a um laço de fita ou não usar o pingente por não possuir uma corrente, é motivo de infindáveis preocupações, até que a situação se complica ainda mais com a "ajuda" de Mary Crawford, quando Edmond, como se tivesse uma bola de cristal, surge com uma corrente de presente. Há inúmeros episódios desse tipo de comunicação "interna" entre eles, assim como evidências de que as outras pessoas não são capazes de perceber o que está se passando.
Mas o principal de tudo é que Fanny Price representa melhor, entre todas as heroínas austeanas, o que comentamos no post anterior das qualidades anti-românticas dos personagens de Jane Austen, do destino romanesco extraordinário que se torna exatamente o seu inverso, uma vida comum, previsível, ordinária.
Saída da pobreza, colocada em uma mansão onde é posicionada na situação de agregada, Fanny resigna-se e persevera numa vida sem grandes levantes de espírito ou de ações. Demonstrando - como ocorre com inúmeros outros personagens - que ter paz permanente é mais valorizado do que os poucos instantes de felicidade fulgurante (como ocorre com Marianne Dashwood, de Razão e Sensibilidade, por exemplo, que se dá muito mal por não pensar duas vezes antes de se deixar levar pela emoção abosluta). E que a felicidade, se existir, só poderia ser baseada nesse princípio da continuidade e, portanto, ser duradoura. E finalmente ainda Fanny e Edmond são claros exemplos de que o afeto entre um homem e uma mulher, em Jane Austen - como Harold Bloom destaca no mesmo artigo - é um sentimento mais profundo e mais eterno do que o amor.
( a continuar)
Bibliô:
1995, BLOOM, Harold. The Western Canon - the books and school of the ages. Nova York, Riverhead books.