José de Ribera (Játiva 1581 - Naples1652)
Saint Augustin (1636)
Para quem chegou agora: há dois posts comecei a escrever sobre a Autobiografia / Autoficção ("A escrita do eu" e "A autobiografia"). Basicamente é impossível hoje falar de literatura contemporânea sem tocar nesse assunto. Portanto, além deste post haverá alguns mais sobre o tema.
Em maio de 2002, a revista francesa Magazine Littéraire publicou a matéria de capa "As escritas do Eu" (nº 409). Como sempre ocorre, a revista convida vários especialistas para escreverem sobre o tema, de modo claro, simples e breve. Transcrevo a partir de agora os conteúdos de cada ensaio, de modo que possa contribuir para despertar o interesse sobre o assunto. A ML vende números atrasados no site da revista.
O primeiro ensaio é de Lucien Jerphagnon, especialista em antiguidade grega e romana, que publicou diversos trabalhos também sobre a Idade Média e Santo Agostinho. O ensaio dele para a ML é o título deste post: "Saint Augustin ou la conscience à nu" .
Gérard de Lairesse
Liège 1640 - Amsterdam 1711
La conversion de Saint Augustin (1663)
No texto, Jerphagnon explica que, antes de Santo Agostinho, ninguém falava de si mesmo. Na antiguidade greco-romana, por exemplo, a sociedade, o grupo e o clã tinham total relevância em oposição ao "eu", infinitamente menos valorizado. As exceções só confirmam a regra. Pois, quando Julio César escreveu sobre si, foi para contar a campanha da Gália, em terceira pessoa. Há também um texto do imperador Otávio Augusto chamada as Res gestae, em que ele fala em primeira pessoa, narrando seus feitos, mas em nenhum momento toca na sua vida pessoal. Mesmo quando fala de si, fala de sua pessoa pública, das ações relevantes que fez para a sociedade. E assim ocorria com outros.
Nesse sentido, Jerphagnon afirma que, entre os anos 397 e 401, ao expor ao público a sua vida privada, Santo Agostinho inovava. Contudo, ainda assim, o texto que Santo Agostinho escreve tem um objetivo claro. Chama-se Confissões e visa sobretudo fazer um balanço da sua juventude até chegar à verdade, quer dizer, a Deus.
Dentro desta perspectiva, Agostinho escolhe narrar, dentre os acontecimentos passados, aqueles que são significativos da sua miséria ou da misericórdia divina, das suas dúvidas e da sua fé, do seu arrependimento e da sua alegria. São fatos ocorridos na sua infância, na adolescência, nos quinze anos de vida comum com uma jovem, nas recordações de um filho desaparecido muito pequeno, o tempo perdido em uma seita de iluministas e, sobretudo, a procura de um Deus e a alegria de ter se permitido encontrar-se e encontrá-Lo. Tudo isto, expresso dentro de um contexto de intensa emoção. Mas ele não deseja falar de si por si, àqueles que se interessam pela vida dos outros, a essas pessoas (nas palavras de St.Agostinho) "curiosas da vida dos outros, negligentes em retificar as suas" (Conf. X.3.3).
Dito isto, Jerphagnon chama a atenção para o fato de que ninguém, antes de St.Agostinho, havia aprofundado tanto o "eu sou", porque ele soube observar - com os fins já comentados antes - o desenrolar da sua própria vida. Segundo o autor, Santo Agostinho abriu a via à introspecção, à experiência da subjetividade e a sua expressão literária. Ao dizer "eu", era certamente dele de quem ele falava, mas era também de todos os homens. Pois, nos séculos seguintes, as pessoas se reconheciam em certas passagens das Confissões. Todos passaram a desejar saber mais, cada vez mais, sobre o mundo e sobre si mesmo. Rompendo com o "literariamente correto", St.Agostinho abriu uma brecha por onde vieram Boécio, Abelardo, Teresa d'Ávila, Montaigne, o cardeal de Retz, Casanova, Rousseau, Talleyrand, Chateaubriand, Musset, Newman, Gide etc.
Philippe Lejeune (o pintor)
Saint Augustin à Hippone
(huile sur toile, 1980)
Obs: TODAS as citações e referências deste texto são do autor do ensaio. As traduções (hélas!) são minhas.
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