Maurits Cornelis Escher - "Hands"
"Je est un autre"
Rimbaud
Quando Rimbaud escreveu uma carta a Paul Demeny, em 15 de maio de 1871, e formulou a famosa sentença do "eu é um outro", ele descreve nas frases seguintes os estágios desse desdobramento: "eu assisto à eclosão do meu pensamento: eu o observo, eu o escuto..."
A literatura do eu - autobiografia, autoficção - traz em si uma certa percepção de que a realidade do eu é também fugidia, passageira, fluida. Quem escreve sobre o mais íntimo de si, no mesmo ato que escreve, já percebe a distância que há entre ele/ela e o que está escrito lá.
Em parte por essa razão, André Malraux, ao escrever sua autobiografia, forjou a expressão "anti-memórias" (Antimémoires). Ele explicou que a palavra não teria o sentido inverso das memórias, mas sim, um outro sentido, que estas não poderiam preencher. Talvez porque sejam muitos "eus" que vivem a nossa vida e que não seja viável compreender e apreender todos. Talvez porque um livro de memórias (como, aliás, qualquer escrita), já implica em fazer escolhas (escolhas dirigidas por interesses específicos) e que o fato de ser um relato de fatos ocorridos na vida do autor não os torna menos fictícios do que um romance.
Edvard Munch - O Grito
A escrita autobiográfica ou autoficcional coloca em questão a própria existência de um eu único e original.
Em ensaio sobre a questão do sujeito para a Psicanálise, Olandina de Assis Pacheco explica que Freud constrói uma primeira "tópica", tendo o sujeito como origem. Depois, na segunda tópica da teoria freudiana, o sujeito é deslocado, não é mais origem, mas constante devir, sempre advindo de um pólo pulsional em incessante produção. E ela conclui: "trata-se de um sujeito ficcional, bem mais próximo do sujeito/não sujeito da filosofia contemporânea".
A idéia coincide com a palavra criada por Serge Doubrovsky em 77, de "autoficção". Ele a explicou como "uma ficção de acontecimentos e fatos estritamente reais". E, mais tarde, em outro livro, afirmou: "eu quase não existo, sou um ser fictício, eu escrevo a minha autoficção".
(o assunto continua no próximo post)
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